TEL AVIV – A crise do coronavírus está afetando fortemente Israel, um país muito mais acostumado com guerras e conflitos armados do que com um vírus microscópico. Israel está claramente passando por um momento complicado, que mistura lockdown, alto desemprego, falta de liderança, protestos de rua, fanatismo religioso e cidadãos (anônimos ou não) que insistem em ignorar as diretrizes médicas. Ninguém acha que precisa dar o exemplo. E todos acham que só seus motivos são corretos para violar o atual lockdown (o segundo desde março).
Primeiro, é preciso entender que, apesar de todos os problemas, não é necessário exagerar. Israel não está em perigo de viver uma guerra civil e nem uma onda de miséria ou fome. Os hospitais não estão lotados (pelo menos por enquanto), apesar de que equipes médicas realmente estejam sobrecarregadas. O enfrentamento da crise do coronavírus em Israel é complicado como em tantos outros países. Há governos que reagiram (ou reagem) melhor ou pior, há populações que respeitaram (ou respeitam) mais ou menos as diretrizes, há pacotes econômicos mais ou menos robustos.
Em Israel, houve dois lockdowns – um ainda em vigor –, foram abertas dezenas de alas de hospital para tratamento da Covid-19 e a ajuda econômica para profissionais liberais e empresários continua chegando às contas bancárias. Mas, certamente, há muitos israelenses que passam por maus bocados, como em todo o mundo.
Também como em todo o mundo, há quem duvide do perigo do vírus e reclame das instruções dos especialistas. Cada um reclama de seu nicho. Fechar academias de ginástica? “Que absurdo!”, dizem os donos de academias. “Ninguém pega coronavírus levantando peso ou correndo em esteiras!”.
Fechar escolas? “Que absurdo!”, dizem pais que precisam trabalhar. “Escolas não são o problema! O problema são as sinagogas!”.
Fechar sinagogas? “Que absurdo!”, dizem os ultraortodoxos. “Os últimos que tentaram proibir judeus de rezar foram os nazistas! Deus vai nos proteger! Além do mais, se pode-se sair às ruas para manifestações políticas, por que não deixar sinagogas abertas?”.
Proibir manifestações? “Que absurdo!”, dizem os manifestantes. “Isso seria o fim da democracia e uma conspiração do primeiro-ministro para calar o povo! Além do mais, se as sinagogas estão abertas, por que não podemos marchar pelas ruas?”.
Sim, sim, é um jogo de dominó. Se um pode, por que não posso também? E quando o governo decide fugir desse jogo de empurra e optar por um lockdown total e severo para baixar o nível de infecção (Israel registra um dos maiores níveis diários de infecção do mundo, com um grande aumento também da mortalidade), cada nicho começa a reclamar que “é ridículo fechar tudo”. Conclusão: se fechar só os locais mais perigosos o bicho pega, se fechar tudo o bicho come.
A questão das manifestações é uma das mais complicadas. Há muita crítica à maneira como o governo está lidando com o coronavírus e isso está acirrando a oposição ao Netanyahu. Tanto a oposição política (que não tem apreço pelo primeiro-ministro) quanto a oposição religiosa (que odeia ou ignora o stablishment). Passando pela oposição econômica (que exige uma maior indenização) e a oposição ideológica (quem não se identifica com o Estado Judeu).
Há dois grupos principais que têm se manifestado nas ruas: 1) opositores ao Likud, que querem o fim do governo Netanyahu por vários motivos e; 2) pessoas que estão passando por problemas econômicas e reclamam que o governo não os está ajudando. Esses dois grupos (que não são homogêneos) estão unidos nos protestos das “bandeiras negras”, que têm lotado praças, pontes, cruzamento de estradas em muitos locais do país.
Eles defendem o direito de protestar, defendido pelas leis básicas de Israel. Mas e o lockdown? Seria, para eles, apenas uma maneira de suprimir a democracia. Eles alegam que, se foram às ruas com máscaras e distanciamento social, não há problema. Mas é preciso ser um tanto ingênuo para acreditar que não haverá aglomeração e que todos ficarão de máscara enquanto gritam palavras de ordem. Nos EUA, estudos apontam para aumento de infecções depois de protestos.
Essa questão das manifestações ficou ainda mais complicada no último fim de semana. A polícia passou a agir com mais violência na repressão a essas passeatas. Houve feridos, muitos vídeos de gente sendo empurrada, muitos relatos na mídia e posts em redes sociais sobre a brutalidade policial. Alguns dizem que a polícia apenas está fazendo o seu trabalho: dispersando manifestantes que não deveriam estar nas ruas e que ameaçam a saúde dos outros. E que alguns desses manifestantes são eles mesmos violentos.
Outros, no entanto, apontam para uma repressão proposital. O ministro de Segurança Pública, Amir Ohana – um dos maiores defensores de Netanyahu – acredita que os manifestantes são todos anarquistas e arruaceiros que só querem mesmo derrubar o governo por modos não democráticos. Ele teria ordenado à polícia para que agisse com mais força. Quem sabe a mando do próprio premiê. Certamente, as duas alegações podem ter algum fundo de verdade.
Depois que a polícia agiu com força bruta nos protestos Tel Aviv, foi a vez de os ultraortodoxos de Bnei Brak acusarem os policiais do mesmo. Não por estarem protestando, mas por se aglomerarem nas ruas e em sinagogas que se mantêm abertas contra todas as diretrizes do lockdown. Para alguns deles, a repressão ficou mais violenta para mostrar que a polícia não reprime só “esquerdistas”. Netanyahu, aliás, é criticado pela oposição por ter supostamente deixado os haredim se aglomerarem por motivos políticos (porque eles o apoiam). Certamente, há esse apoio, mas não se pode negar que o governo está tentando convencer a liderança dos ultraortodoxos (e da minoria árabe) do real perigo do coronavírus.
Não se pode diminuir a gravidade da situação ou a importância dos protestos democráticos. E nem justificar violência policial. Mas é preciso saber que quando milhares de pessoas saem às ruas durante um lockdown, não podem depois exigir que os outros não saiam. É presunção achar que só os seus motivos para violar as regras são certos.
Aliás, uma das coisas mais importantes em momentos como esse é o exemplo público. Se você não quer que os outros ignorem diretrizes, não as ignore também. Este governo é um grande exemplo de “faça como eu digo, mas não como eu faço”. E, por isso, ao meu ver, perdeu a confiança do povo. Sem essa confiança, cada um faz o que quer e só reclama do outro.
Recentemente, o Canal 12 de TV revelou uma foto mostrando uma festa recente de oficiais da polícia sem distanciamento social ou máscaras. As revelações são diárias. Abaixo, uma lista parcial das autoridades que ignoraram as diretrizes de lockdown que tanto exigem dos outros. Sem que eles mesmos cumpram suas próprias ordens, veremos cada vez mais gente nas ruas, cada um por motivos que consideram “mais legítimos do que os dos outros”.
1) Primeiro-ministro Netanyahu: recebeu a visita de seu filho Avner durante o seder de Pessach no primeiro lockdown, apesar de ter implementado um confinamento geral que incluía a ordem de que as famílias não se reunissem para a ceia de Pessach;
2) Presidente Reuven Rivlin: recebeu a visita de sua filha na ceia de Pessach;
3) Ministro da Educação Yoav Galant: recebeu sua filha na ceia de Pessach;
4) Parlamentar e ex-ministro da Defesa Avigdor Lieberman: recebeu seu filho na ceia de Pessach;
5) Parlamentar e ex-prefeito de Jerusalém Nir Barkat recebeu sua filha na ceia de Pessach;
6) Parlamentar e ex-ministro da Saúde Yaakov Litzman: participou em uma reza comunal contra as diretrizes;
7) Vice-ministro de Segurança Pública Gadi Yevarkan: entrou em contato com um doente com Covid-19 e violou o isolamento;
8) Parlamentar Micky Levy: visitou seu filho no Rosh Hashaná, apesar do novo e atual lockdown que incluiu a ordem de que as famílias não se reúnam;
9) Ministra do Meio-Ambiente Guila Gamliel: viajou até Tiberíades em Rosh Hashaná e rezou em uma sinagoga, apesar do lockdown que proíbe se distanciar mais de 1km da casa ou frequentar sinagogas;
10) Primeira-dama Sara Netanyahu: recebeu um cabeleireiro em casa durante o recente lockdown;
11) Chefe do Serviço de Segurança (Shabak), Nadav Argaman: convidou amigos para visitar sua sucá durante a festa se Sucot, apesar da diretriz contrária a visitas mútuas.