Não sou exatamente um homem de esquerda e acho um desastre que hoje em dia, tenhamos que abrir textos com nossas posições ideológicas. Nas eleições brasileiras, não voto desde que saí do país. Em Israel, meus votos e identificação natural vai para a centro-direita, ainda que discorde veementemente do governo atual.
Pois bem. Devido à minha pesquisa de doutorado – e pelo meu campo profissional – acabo por estar bastante ligado ao cenário político dos EUA, principalmente a política interna das comunidades judaicas. Ri quando li que a congressista Alexandria Ocasio-Cortez (conhecida como AOC) cancelou a sua participação em um evento de homenagem à Yitzhak Rabin. Rabin, primeiro-ministro israelense assassinado por um extremista de direita que se opunha aos acordos de paz com a Autoridade Palestina, é visto como uma espécie de mártir na sociedade israelense. Sua história se confunde com o próprio Estado de Israel. O primeiro chefe de Estado nascido no país, ainda no Mandato Britânico para a Palestina, foi um soldado profissional por vinte e sete anos. Adotou medidas duras para conter a violência da Primeira Intifada, mas se reinventou como um pacifista, ainda que relutante, durante os Acordos de Paz de Oslo. Não por confabulações nefelibatas, mas por pragmatismo – Israel havia conquistado uma posição de superioridade e solidez que permitiam um arranjo de paz e não de guerra perpétua. O extremista que o assassinou não conseguia vislumbrar paz, pois via árabes como eternos inimigos e o território de Israel como indivisível – negociações seriam heresia.
A ideia de Rabin, de uma paz pragmática, se confunde com toda uma geração ansiosa pela paz, mas que viveu guerras intermináveis. A música “Kan noladeti”, “Aqui Nasci” – representante de Israel no Eurovision de 1991 – representa um pouco este espírito: “aqui nasci, aqui nasceram meus filhos, aqui construí minha casa com minhas duas mão (…) aqui abri a porta para os vizinhos, e vamos dizer “ahlan” para quem vier”. A ânsia por uma normalização e a possibilidade de um futuro normal, hoje em dia algo disputado por setores que acreditam que tais ideias nada mais são do que utopia, definiu uma geração dentro e fora de Israel.
Ao convidar a jovem congressista, os ativistas americanos do Paz Agora, um movimento que em nada está próximo do atual primeiro-ministro de Israel, procuraram aproximar ideias de pacifismo, de apoio à uma solução de dois Estados e rejeição de fanatismo de dois lados do oceano. Logo que AOC foi criticada por ativistas pró-Palestina nos EUA, cancelou sua participação quase que imediatamente.
O episódio me lembrou dos meus anos na faculdade. O PSTU, um partido que ironicamente eu sempre chamei de “Partido Só Tem na Universidade”, havia lançado em Porto Alegre um candidato à Deputado Estadual cuja única plataforma era “Pelo Fim do Estado de Israel”. Julio Flores, atual candidato à prefeitura de POA, declarava que Israel era financiado pelo EUA para agredir os árabes e uma série de outras platitudes que não somente eram absurdas, eram sinceramente risíveis para alguém que seria eleito para a Assembleia Legislativa local.
Tais posições absurdas e puristas acabaram por se tornar meu objeto de estudo. Ao estudar a trajetória da resolução da ONU que condenou o sionismo como racismo em 1975, acabo por ler centenas de textos sobre Israel. Alguns são abertamente antissemitas, todos errados no geral. Nisto se incluem as colegas parlamentares de AOC, Ilhan Omar e Rashida Tlaib, que também oscilam entra as duas posições: de desonestidade intelectual (Tlaib dizendo que os árabes-palestinos “abriram as portas para refugiados judeus”) ou antissemitas (Omar dizendo que “Israel hipnotiza o mundo”, reproduzindo ideias antissemitas clássicas). Mais uma vez, seus pares defendem tais posições, criando nuances que sequer existem nas declarações iniciais para justificá-las.
Este campo da esquerda curiosamente prefere se engajar com o conflito em absolutos. Rabin, um pragmático, não tem espaço nestas ideias. O problema é que “poder” no geral é uma condição que coloca seus detentores em uma zona cinzenta de moralidade. O sionismo, procurando retirar judeus de sua condição passiva, colocou o dilema de deter poder de maneira aberta na história judaica. Um país que nasceu de uma invasão cujo objetivo era sufocar sua independência, Israel conseguiu se manter incrivelmente moral em um mundo em que a sobrevivência de Estados na maioria das vezes se deu em meio a violências infindáveis. AOC curiosamente teve tempo e paciência para se encontrar os Neturei Karta, um grupo minoritário e extremista que rejeita por completo a existência de Israel e condena o sionismo como heresia.
Ao rejeitar o engajamento com contradições, tais setores da esquerda se engajam na alienação do conforto de políticas radicais que prometem um mundo ideal (“a Palestina democrática, não-racista” de Julio Flores, com exemplos nulos na realidade). Obviamente qualquer observador entende que um deputado estadual do Rio Grande do Sul não tem como desmantelar o Estado de Israel e tais ideias somente ressoam entre os convertidos à tais absurdos.
A última dimensão, claro, é algo curioso. AOC e companhia não colocam a vasta maioria dos Estados do mundo como necessários de grande crítica. O campo palestino inclusive consegue dar palco para Leila Khaled, uma terrorista sequestradora de aviões, colocando-a como palestrante em eventos em universidades. “É um animal muito violento, quando atacado, se defende” parece ser a leitura sobre Israel que impera nestes círculos de ideias. Sionismo então, é algo que jamais pode ser mencionado a não ser como um tipo de racismo, imperialismo e genocídio e alguns judeus são ungidos (caso abandonem qualquer ligação com Israel) e quem não se encaixa é deixado de fora. Rabin jamais poderia ser visto em sua totalidade. Ao se colocar neste campo, AOC e um vasto setor da esquerda – nos EUA e no Brasil – se pintam como irrelevantes. Talvez seja para o melhor.