No início deste ano, o psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Christian Dunker, viajou a Israel e à Palestina a convite do IBI. Durante a viagem, participou da conferência “Política e religião no Brasil e nas Américas: igrejas evangélicas e suas relações com o judaísmo, sionismo, Israel e as comunidades judaicas”, realizada na Universidade de Haifa entre os dias 13 e 15 de janeiro.
Antes da viagem, Dunker conversou um pouco conosco sobre suas expectativas quanto à viagem e à conferência, bem como sobre possíveis contribuições da psicanálise para o entendimento do conflito Israel/Palestina e seus significados mais amplos.
Confira a entrevista abaixo:
IBI: O que chega aqui no Brasil não são necessariamente as narrativas dos movimentos sociais tanto de Israel como da Palestina, mas chegam os usos políticos do conflito. Você pretende usar essa visita para pensar o Brasil? Porque esse conflito, de tão singular, nos parece tão universal, não é?
DUNKER: Exatamente! Essa é minha abordagem inicial. A gente não sabe como vai ser. Eu tenho muito interesse em conhecer também a perspectiva sionista, os diferentes tipos de sionismo, até mesmo pela participação do Freud nesse debate. A história da formação do Estado, da nação israelense, entranhada com o judaísmo, é uma coisa fascinante. Mas, geralmente, é uma história que costuma ser apresentada de um modo muito gritado. Muito slogan, muita posição de partida, o que é característico de histórias muito densas como essa. Mas, respondendo à sua pergunta, acho que é um laboratório essencial para a gente entender o Brasil hoje, que está passando por uma transformação fundamental do lugar da religiosidade, da ética, da formação de laços sociais, da definição de cultura, da ocupação do espaço público. E acho que a situação israelense é um ótimo espelho para o que a gente está vivendo. Muito mais, por exemplo, que a África, que a Europa e seus processos de imigração, mesmo a Ásia com a sua turbulência mais ou menos característica.
IBI: Você poderia mencionar onde o Freud fala de sionismo? Onde ele parece se adequar ideologicamente a um ou outro lado, onde ele aborda isso? Está nas Obras Completas?
DUNKER: Ele fala disso em vários momentos, um pouco na sua autobiografia. Eu considero a atitude de Freud uma atitude exemplar do ponto de vista de como a gente pode e deve politizar coisas que a princípio não seriam muito políticas. Ele sempre se declarou um judeu não praticante, um judeu ateu, culturalmente ligado ao judaísmo, porém sem que isso fosse uma marca identitária muito forte… até que Viena foi ocupada. Nesse momento, em que os judeus passam a ser perseguidos, em que o judaísmo se torna um fator de periculosidade e vulnerabilidade, ele assume com toda a força e com toda a expressão que ele já tinha naquele momento – estava com mais de 70 anos – o fato de ser judeu, e o pronuncia na conferência da B’nai B’rith, organização à qual ele tinha pertencido quando era muito jovem. Ele fez parte, se não me engano, da juventude judaica na Áustria e acompanhou a formação do sionismo pelo Herzl. Afastou-se disso, mas nessa conferência na B’nai B’rith — está nas Obras Completas — ele faz um apanhado da sua relação com o judaísmo que é muito bonito e potente do ponto de vista político.
A gente tem outra fonte muito interessante no debate sobre o judaísmo em Freud, que é “Moisés e a Religião Monoteísta”. É um trabalho mais histórico, que tem por ideia central a ideia potente de que somos todos descendentes do estrangeiro: nós viemos do outro, nós não viemos do mesmo. Isso pode ser uma ideia interessante para pensar a equilibração de nacionalismos identitários excessivamente positivos.
IBI: Que instrumento a psicanálise pode oferecer para se pensar o conflito palestino-israelense, para além desses que você mencionou sobre o Freud e o sionismo?
DUNKER: Acho que a psicanálise seria um saber auxiliar, pois essa é uma questão que ultrapassa muito o nosso escopo. Mas eu diria que a gente tem uma discussão, na questão Israel/Palestina, sobre qual é o estatuto do sofrimento na política. Como o sofrimento adquire valência política, como a gente pode, então, postular um tipo de política que possa prescindir da identidade, postulando um outro tipo de universalidade. Até hoje, o embate político é muito pautado por universais positivos: os direitos humanos, a cidadania universal, o cosmopolitismo… A psicanálise talvez possa contribuir para essa discussão defendendo que, se há um universal humano, ele é o universal das exceções, o universal da não-inclusão na totalidade. É muito menos essa ideia de universais positivos.
Outra contribuição interessante que a psicanálise pode ter diz respeito à formação do que eu chamaria de uma oniropolítica. Uma política que passaria pelo complemento entre a biopolítica de Foucault e a necropolítica de Mbembe. Elas se alternam hoje no mundo, deixando de lado a política como capacidade de sonhar com um mundo que não está exatamente presente. Mas, ainda assim, há um mundo dotado de materialidade. Acho que a capacidade de pensar o estrangeiro em nós tem a ver com isso: o estrangeiro é essa exceção que nos habita a todos. Isso pode nos ajudar a entender o movimento material do discurso, que é uma palavra que a gente usa intensamente. A psicanálise enquanto experiência da fala, da linguagem, tem um entendimento próprio sobre os discursos: como os discursos se transformam, como os discursos engendram narrativas, como os discursos aparelham relações de prazer e de gozo, como os discursos criam individualizações… Isso poderia ser uma contribuição metodológica para entender as peculiaridades do conflito entre Israel e Palestina.
IBI: Um dos principais pontos do conflito palestino-israelense é exatamente que Israel é acusado de perpetuar a dor do genocídio em outros povos depois de terem sentido essa dor. Antes vítimas do nazismo, hoje são os algozes. E uma percepção dos israelenses é de que a Palestina representa o antissemitismo e quer a destruição de Israel. Isso é singular por essas especificidades e também universal para se pensar outros conflitos. Para a psicanálise, existe um aparato metodológico, um repertório a partir do qual se possa pensar essas narrativas e os traumas nacionais?
DUNKER: Sim, tem uma vertente bastante estudada, que acabou se consagrando na teoria política e na sociologia, que é de pensar a lógica do trauma dentro da política. Eu diria do trauma e do luto, dois conceitos talvez associáveis em psicanálise. A ideia de que o traumático tem uma estrutura de repetição parece estar se efetivando nesse discurso que coloca o antissemitismo em associação com a perseguição a palestinos, e assim reciprocamente. De tal maneira que a lógica do carrasco e da vítima acaba se generalizando para todos os lados e desativando a possibilidade de você realmente elaborar o que há de traumático na Shoá, o que há de traumático na Naqba, o que há de traumático sobre o traumático. Isso tem se desenvolvido não só em Israel, mas no Oriente Médio, que passa então a reverberar essa cadeia de traumas em que temos apossamento da história, naturalizações da história, fetichizações da história. E são todas produções muito características do traumático. Uma coisa pela qual tenho me interessado é a figura política do muro. Nós temos a formação do muro que cobre Gaza, mas também o Muro das Lamentações, o muro como uma estrutura heterotópica, uma estrutura que tem várias leituras, vários entendimentos, todos eles finalizando uma forma de negação do conflito, uma negação da produtividade do conflito.
A política discursiva da psicanálise pensa que os conflitos podem ser mais ou menos produtivos em decorrência de como a gente os coloca em discurso, de como a gente produz laço social com eles, de como a gente os lembra, de como eles escapam à dimensão da repetição traumática, e assim por diante. Um belo exemplo de como isso pode se produzir é Jerusalém, uma cidade- sintoma, uma cidade para onde confluem os conflitos e para onde eles também, ao mesmo tempo, não podem ser conectivos, não podem ser historicizados, não podem ser exatamente simbolizados.
IBI: Como a psicanálise lida com a diferenciação entre o trauma individual e o que se torna o trauma nacional?
DUNKER: Podemos dizer que, olhando de perto, nenhum trauma é individual. Uma pessoa, quando é exposta a uma situação de violência, quando tem uma perda imprevista, quando há uma violação muito grave, nunca é um evento que toca aquela pessoa apenas. Toca a sua família, os seus descendentes, os seus ascendentes, toca todos aqueles com quem ela tem um laço social. Então o traumático não é uma noção primariamente individualizada. Inclusive, faz parte do traumático se individualizar, ser percebido como algo que aconteceu apenas com esta pessoa. Isso já é um efeito.
A pessoa que passa por um trauma de natureza sexual frequentemente se culpa, tem vergonha e acha que aquilo é algo que só pertence a ela, tão intimamente a ela, que ela recalca, ela quer esquecer. Ela tenta se desfazer daquilo como se aquilo fosse exclusivamente dela. Então, como um trauma se elabora, se simboliza? Quando você começa a reconhecê-lo a partir de outros processos de simbolização que o tornam coletivo, que o tornam reconhecível, que o tornam parte da nossa história ou da nossa cultura. O traumático passa a ser uma força de produção daquilo que a gente não quer que se repita.
O traumático tem duas faces: a positiva, quando conseguimos contar o que aconteceu, quando conseguimos fotografar, quando as imagens do traumático ficam voltando, quando temos pesadelos, angústias dirigidas a lugares, a datas, a pessoas. Essa é a face mais conhecida do trauma, a face em que o trauma se torna reivindicação, em que o trauma pode ser nomeado. Mas a face mais importante seria aquela em que o trauma silencia a gente de tal maneira que esse silêncio é transmitido. Ele vai à frente como aquilo que não pode ser falado, como aquilo que não se articula no simbólico, como aquilo que é explicitado, mas sem que o indivíduo tenha uma ação, uma participação direta e voluntária para evitar aquilo. É como se ele fosse atravessado por aquilo como uma onda que deixa uma lacuna. Essas são as faces mais perigosas porque elas estão ligadas com a erupção de violências imprevistas. Violências excessivas, que são inegociáveis, repetições que não praticam só a agressão em torno de interesses que são contrários, mas que evoluem para o sadismo, para o masoquismo, para algo que é muito mais poderoso do que a nossa capacidade de produzir pactos e de refazer os pactos que a gente viola.
IBI: Pensando do ponto de vista do silêncio institucional, faz muito sentido pensar a ferida aberta da ditadura que temos no Brasil hoje. Há um silêncio institucional de não reconhecimento das vítimas, dos seus descendentes.
DUNKER: É, de repente, você vê tudo isso voltando e diz “como é possível?” Não é só possível como é esperado. Nós, que fomos o último país da América Latina a ter uma Comissão da Verdade, somos também o primeiro a ter um governo de milicianos.
IBI: Para finalizar, eu gostaria que você falasse rapidamente sobre a teologia da prosperidade. tema da sua apresentação na conferência em Haifa. Você poderia falar sobre isso?
DUNKER: A teologia da prosperidade pode ser entendida como uma forma de religiosidade em que você abole a distância entre o mundano e o sagrado. Essa divisão existe no evangelismo clássico, no catolicismo, no protestantismo histórico: você tem espaços, experiências, pessoas que estão no mundo, e você tem o lugar do sagrado, que é uma exceção ao mundo. A teologia da prosperidade abole essa diferença de tal maneira que as suas trocas mais básicas e mais cotidianas estão sujeitas à interseção divina. Ou seja, se o seu ônibus chega mais cedo, se você é bem sucedido, se você teve sorte naquele dia, é necessariamente porque você está numa conjunção favorável com o divino.
Isso foi muito eficaz para pensar em populações inteiras que foram deixadas de fora da proteção do Estado. A gente tem as comunidades, temos lugares num Brasil profundo que o Estado não cobre, de onde a Igreja Católica se retirou a partir da crítica da teologia da libertação. E também o PT, nos anos de Lula e Dilma, acabou por fragilizar essa dimensão religiosa, da esquerda católica, que estava presente na esquerda brasileira desde o golpe militar. Então se abriu um espaço para que um novo tipo de religiosidade profundamente conexa com o neoliberalismo, com essa fase do capitalismo, se implantasse. Você se entende como um negócio, como uma empresa, e essa empresa é uma empresa divina. Ela faz parte de um conglomerado global que está numa espécie de batalha espiritual onde as coisas acontecem em todos os níveis: na política, na sociologia, na vida das pessoas, numa espécie de interconexão pautada por pequenos interesses e pequenas intervenções milagrosas. Isso nos leva a pensar num projeto muito curioso do ponto de vista da hermenêutica, que é o projeto de que Jerusalém precisa ser retomada, reocupada. A Terra Santa precisa se tornar de novo uma terra de judeus, para que os judeus deixem de ser judeus e concordem com a chegada do Messias, englobando um plano religioso dentro de outro. É uma verdadeira neocatequização. É um plano que junta economia e moralidade em uma nova chave que responde aos anseios do neoliberalismo. Isso foi bem sucedido no Brasil e estamos exportando agora para uma região onde existe um outro cenário de interesses — o que é muito curioso, porque é uma espécie de colonização. Uma colonização maluca que só seria possível com parâmetros capitalistas de um país de terceiro mundo, que no fundo está querendo conquistar Jerusalém. É uma cruzada.
IBI: Isso tem muito a ver com o esfacelamento da divisão entre o estado de Israel estado moderno e a Israel espiritual, bíblica.
DUNKER: Sim. Quando você corta essa divisão entre os mundos, a Israel do Velho Testamento se torna viva, se torna o palco de uma batalha que é aqui e agora.