O extermínio no gueto de Varsóvia

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Ao redor de 400 mil pessoas compartilhavam um espaço de cerca de quatro quilômetros quadrados na cidade de Varsóvia, ao redor de 2,4% do território da cidade. Construído ao redor de 16 de novembro de 1940 o gueto de Varsóvia foi hermeticamente fechado com muros de 3 metros de altura e cacos de vidro na parte superior, contando com a guarda de militares com metralhadoras, enquanto pelo lado de dentro fora mobilizada guarda judia a quem era dado portar bastões.

A administração nazista atribuiu aos judeus a responsabilidade por limpar e ordenar internamente os guetos, e assim cabia a eles coordenar a retirada dos corpos desfalecidos nas ruas com improvisadas carroças de madeira conduzidas por duas pessoas, em cima das quais jaziam nus e empilhados os corpos enquanto eram carregados rua afora para o destino. O nazismo cortou a comunicação horizontal com o mundo exterior, restara a vertical da qual ninguém é privado até o último respiro. Fechado o gueto também para o trânsito, exceto para a saída para prestação de trabalhos forçados, ou bem deportação ou enterro, vale dizer, era o fim da existência em qualquer caso. O mundo do gueto era o fim do mundo, o ocaso do espírito mediante a progressiva degradação física antes do definitivo perecimento do corpo.

O gueto de Varsóvia dispunha de condições gerais desafiadoras da mais fecunda imaginação empregada na descrição das profundezas do inferno. A luta pela vida era empenho de todo o instante, e já não mais apenas diária. A vida era desafiada pelo tifo e tuberculose, entre outras enfermidades potencializadas pela insuficiência das rações limitadas a 184kcal diárias, bastante abaixo das 1800kcal destinadas aos poloneses e 2400 aos alemães no período, pois a política era forçar a morte, deixar morrer e, por último, matar. Enquanto o último momento não chegava, os judeus eram insultados e roubados, molestados e violentamente espancados pelos alemães.

Nos espaços de destruição do humano, a fronteira de transição da normalidade psíquica para a interdição absoluta da razão era tênue, temperada pela deterioração da esperança quando os olhos eram apresentados à sucessão de cadáveres em profusão de gente de todos os tipos e idades, desenhando as cores e o silêncio como requiém patrocinado pelas inenarráveis profundezas motivadoras dos perpetradores. Não restavam mais do que olhos profundos e olhares trágicos, corpos reduzidos à ossatura, faces emaciadas e transfiguradas, trapos como cobertura até deles também serem privados ao sucumbir nas ruas.

Aquele era espaço forjado em plena urbe e dela isolado, enquanto Varsóvia seguia a vida logo ali após as interdições físicas dos muros e metralhadoras, tal como ao redor de Auschwitz. Era o espaço da exceção não apenas legal, mas humana, território de seu deslocamento absoluto do horizonte das expectativas mundanas para a esperança na espiritualidade. Ali a normalidade era a absoluta radicalização do mal, logo deslocando-o desta condição pela neutralização da moralidade humana de sua condição de parâmetro da existência. A concretização do mal no gueto de Varsóvia convergia com a lógica de tantos Konzentrationslager (1), lançando mão de impensáveis e perversos recursos também aplicados em outros espaços de exceção e domínio completo. Ainda quando fosse inaudita a capacidade corrosiva do mal em execução, ainda assim era insuficiente para abarcar a tudo e a todos, exterminar horizontalmente até o último vestígio de dignidade humana, do que foi exemplo, Adam Czerniaków, engenheiro e não rabino e um dos Presidentes do gueto de Varsóvia, que para evitar decidir pelo envio dos seus para Treblinka preferiu o suicídio à 23 de julho de 1943. Como na literatura de Arendt (1999, p. 136), é possível supor que Czerniaków talvez tenha recordado o dito rabínico de que “Deixe que matem você, mas não cruze a linha”, pois ao cruzá-la pereceremos por ainda mais tempo sob o testemunho de nossa própria consciência acusadora. Quando a vida parece já quase não apresentar opções, então, a melhor delas será sempre a que preserva a dignidade presente.

A interpretação do mal pela gramática de Ricoeur (1988, p. 48) foi expressa pela ideia de que “Fazer o mal é fazer sofrer alguém”, é impingir-lhe a dor, algo que o nazismo realizou em escala necroindustrial produzindo sofrimento e torturas massivamente antes de atacar a carne humana, torná-la pó e lançá-la às nuvens para próximo da livre imensidão que o diretor do inferno de Auschwitz, Rudolf Hess, não poderia conhecer. Era o operador de potente bomba a realizar a sucção do ar que a todos atingia e exterminava ali entre cercas elétricas, faróis, fuzis e metralhadoras. Hess coordenou a oclusão do espaço existencial de milhões de vidas humanas articuladamente com Adolf Eichmann, como se não houvesse espaço para dimensões do humano para além dos referenciais orientadores do nazismo pautados pela insanidade que desmobiliza a moralidade e desarticula a racionalidade no mundo.

A organização para a morte de milhões de indivíduos passou pela mesa de Eichmann e seu metódico planejamento, indiferente ao sentido de seu trabalho. Foi assim que entre os meses de julho e setembro de 1942 foram deportados para Treblinka desde o gueto de Varsóvia cerca de 300 mil judeus, processo de distribuição de corpos em vida que iniciou em 22 de julho de 1942, alguns milhares também enviados para Minsk, Majdaneck e Auschwitz. A maioria dos que lá desembarcaram dos trens foi assassinada no campo pouco após o teatro que envolvia a recepção dos recém-chegados, e entre os que o acaso permitiu sobreviver logo ecoaria eternamente a vigorosa e interrogação sem resposta sobre onde estava Deus quando o inferno queimava milhões de corpos, sentimentos e futuros compartilhados, o que põe em questão a existência de Deus enquanto absolutamente bom, já que o mal persiste em grau radical no território ético de sua obra-mor, o homem.

Quando o horror neste mundo já não era descritível a quem com ele tomava contato diretamente, começava a fazer sentido e a melhor ser compreendida a queixa e reclamo de Wiesel (2006, p. 67) sobre Deus: “[…] who chose us among all nations to be tortured day and night, to watch as our fathers, our mothers, our brothers end up in the furnaces?” (2). Isto conduz à retomada do inevitável cruzamento da perplexidade com o questionamento proposto por Wiesel (2006, p. 64-65) sobre onde estava Deus quando até mesmo milhares de crianças foram tomadas como alvos de execuções, inclusive por enforcamento público, mesmo quando algum carrasco se negasse a fazê-lo ou, ainda, quando a corda falhasse na missão de produzir o enforcamento de criança em face de seu escasso peso. Então, onde estava Deus quando o pequeno agonizava e agonizava, e naquela condição permanecesse por mais de meia hora? Onde, afinal, está Deus quando este mal corre tão rapidamente esvaindo o sangue de milhares sem que as providenciais forças do Katechon (3) intervenham, e assim sigam sendo exterminadas outras muitas vidas de crianças e inocentes vários, a perecer neste exato momento em que as linhas deste texto terminam de ser percorridas pela atenção do leitor?

NOTAS:
(1) Konzentrationslager é a palavra alemã que designa campos de concentração.
(2) O trecho comporta a seguinte livre tradução: “Quem nos escolhe entre todas as nações para ser torturados dia e noite, olhando para nossos pais, nossas mães, nossos irmãos terminarem nos fornos?”
(3) Katechon é conceito cuja aplicação política no sentido aqui utilizado significa força última de contenção.

BIBLIOGRAFIA:
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 336.
RICOEUR, Paul. O mal. Um desafio à filosofia e à teologia. São Paulo: Papirus, 1988. p. 53.
WIESEL, Elie. Night. New York: Hill and Wang, 2006. p. 120.

FOTO:
Judeus capturados durante a revolta do gueto de Varsóvia. Polônia, 19 de abril – 16 de maio de 1943. National Archives and Records Administration, College Park.

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