Não em meu nome

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Foto de Jack Guez: Manifestante com cartaz com os dizeres, em hebraico, “não à anexação” (Praça Rabin de Tel Aviv – 6 de junho de 2020)

Quem são estes que hoje se arvoram como líderes do sionismo? Onde estavam nos momentos decisivos deste refúgio propugnado há mais de século pelos pais de um sionismo humanitário que, mesmo considerando as agressões dos oponentes, se fazia sempre “a favor” e não “contra”? A favor de um lar nacional para este povo milenarmente exilado, condenado e executado por ideologias esdrúxulas, por argumentos tantas vezes falsificados, e, mesmo após a grande mortandade, o grande e massivo assassinato,  ainda tão presentes, talvez camuflados, escondidos, alterados, mas não menos pestilentos, que se apresentam das mais alteradas formas, às vezes mesmo de uma traiçoeira amizade.

O verdadeiro, o autêntico sionismo é capaz de conviver com suas contradições e enfrentar as consequências destas. 

A criação do Estado Judeu, ao contrário da visão de muitos líderes auto-proclamados sionistas e mesmo dos verdadeiros, a criação deste Estado Judeu, como muitos ideólogos precursores afirmavam, não representou, não deveria representar a consumação dos ideais sionistas. Deveria ser visto como um primeiro grande passo, como a saída do Egito representou a inicial cadeia de acontecimentos que deveria desembocar na criação de um novo povo que não conheceu as agruras da escravidão. 

Por que e como a criação do Estado levou-os a virar as costas à formação da nova civilização judaica? Em que ideia se baseou a atual ganância territorial? Em que capítulo da sabedoria acumulada em tantos séculos se fundamenta a agressão a todo um povo carente de uma liderança autêntica?

Em que preceito religioso ou filosófico se fundamenta a ideia de que o fraco, ao se fortalecer, adquire o direito de devolver ao próximo – qualquer próximo – na mesma moeda?

E, no entanto, é isto que vemos hoje: a espezinhada nação de ontem, vencendo sua anterior debilidade, ao invés de demonstrar ter adquirido não apenas a força física mas também a moral,  se sente no direito não apenas de usufruir dos justos ganhos da vitória, mas, como seus anteriores opressores o faziam,  não se contentam em vencer a batalha, é justificado humilhar o vencido. Não foi este o pensamento que norteou o ideal sionista – a criação de um lar nacional “luz para todos os povos”, não justificaria ações desumanas. Se na chamada “Terra Prometida” habitava um outro povo que se opunha, como seria natural imaginar, sua substituição por outra população, sua derrota na luta armada não justificaria que, além desta, fosse submetido ao menosprezo dos vitoriosos de um lado e o descaso dos irmãos do outro. 

E foi exatamente isto que aconteceu: os árabes habitantes da Palestina sob Mandato Britânico, após a guerra de independência de 1948, acabaram rejeitando tal identidade, e assumindo uma nova, a de palestinos. Uma parte significativa dos habitantes da então Palestina, fugidos pelos combates ou expulsos, se refugiaram entre os países de seus irmãos, que os acolheram, se assim é possível dizer, em campos de refugiados – verdadeiras favelas, passando a viver de favores. Nenhuma ação favorável a melhorar as condições destas populações se viu em todos estes anos, por parte dos países hospedeiros. Situação diferente, própria de uma nação civilizada se constata em relação à população judaica que abandonou os territórios de países árabes, inclusive os que receberam os refugiados palestinos. Passado este mesmo período de tempo, hoje nenhum destes imigrantes se encontra em condições abjetas, tendo sido mais do que absorvidos pela sociedade do recém criado estado, mesmo que não de forma ideal.

Uma vez declarado o cessar fogo, passados anos de progresso social, e depois de outras guerras, seria mais do que natural imaginar que uma pequena potência econômica e cultural se voltasse para a busca de solução dos problemas que sua criação desencadeara. 

Menos de duas décadas após sua criação e após mais uma arrasadora vitória – talvez a maior delas – seria mais do que admissível que tendo conquistado um território muito maior do que o que administrava até então, inclusive o Sinai, seguisse a premissa defendida até então por seus líderes: não nos interessa a conquista destes territórios: eles serão a moeda a ser trocada pela paz.

Não foram poucos os que concordaram com a visão realista de um filósofo, cientista e religioso ortodoxo, Yeshaiahu Leibowitz, que já logo após o fim das lutas pelos territórios expunha sua visão humanista em relação à influência destas terras na vida do renascido país dos judeus. Não o fazia em meias palavras – os territórios acabariam por destruir o estado.

E não é exatamente o que estamos assistindo hoje? Um país que pouco a pouco erigiu muros reproduzindo a essência daqueles que rodeavam os guetos, que serviram de prisão aos seus cidadãos. Muros que hoje encarceram populações dos dois lados – dificultam movimentação em ambos os sentidos e em muitas orientações seja de mentes, seja de indivíduos, seja de diálogo, seja de troca.

Uma potência que, capaz de estimular em segurança a convivência, se tornou pródiga em criar barreiras garantidas não já por seus verdadeiramente heroicos soldados de um pretenso Exército de Defesa mas uma potência armada capaz de violentamente se impor, e às vezes até imoral e criminalmente fazê-lo sobre uma população nem sempre inimiga. Sobre um povo empenhado, na maioria dos casos em continuar a viver em um território cada vez mais minguado nos mais variados sentidos da palavra.

Se o termo “crime” parece duro, chocante, posso garantir que também a mim chocou no brutal episódio ocorrido há poucos anos quando uma formação militar defensivamente imobilizou a tiros um terrorista que, ferido, permaneceu estático no solo. Um dos soldados, inconformado, decidiu voluntariamente que não era suficiente e tomou a iniciativa de dar o tiro assassino matando um indivíduo, já àquelas alturas incapaz de representar ameaça. O soldado que infringiu a ética militar foi detido, julgado pelo tribunal militar e condenado a poucos meses de detenção. Aspecto curiosamente grotesco, durante todo o processo de julgamento, tanto ele como sua família expressaram orgulhosamente o claro parecer de que fizera o justo, não aceitando a visão de assassino e sim de herói.

Este é um exemplo que a imprensa liberal (denominada nos dias de hoje esquerdista) publicou e expôs. Quantos episódios, mesmo que menos chocante mas não menos reprováveis, sabemos que ocorrem no dia-a-dia no afã de manter um território conquistado? Será necessário especular em torno deste episódio? Por si só não representa uma evidente deterioração dos valores que estiveram por trás das forças emocionais propulsoras da criação do país dos judeus e de seu exército por tanto tempo visto como exemplar? Não é uma situação que compete em sua insensatez com aquele outro e  incoerente episódio do assassinato do primeiro ministro Rabin (quem nas primeiras décadas poderia imaginar algo semelhante – mesmo considerando-se episódios bárbaros ocorridos durante as guerras – e estou me referindo aos dois casos: só árabes, pensava-se eram capazes destas agressões a sangue frio…). Seriam ambos representativos do grande temor desenhado por Leibowitz? Em ambas as ocorrências, o que talvez mais nos choque, para além dos próprios fatos, impressiona a nós, que vivenciamos uma autêntica ideia sionista  é o fato  de que uma parte da atual população israelense aplaudiu ambos os acontecimentos, se indignou e continua a se indignar com a condenação dos perpetradores.

Dizia alguns parágrafos atrás, que Leibowitz não estava sozinho e, infeliz coincidência, enquanto escrevo este texto, recebo a notícia da morte de um desses outros expoentes de um sionismo humanista, de uma visão iluminada das bases do Estado Judeu: Prof. Zeev Sternhell. Único sobrevivente no holocausto, de uma família de judeus poloneses, tinha quatro anos quando a guerra começou e dezesseis quando deixou a Europa em direção ao Estado de Israel. Se tornou, como cientista político e intelectual da esquerda israelense, figura exponencial da cultura do seu país. Em 2008 recebeu o prêmio Israel. Se considerava um orgulhoso sionista, participando de todas as guerras de Israel, mas até por isto mesmo, desde o fim da Guerra dos Seis Dias era partidário da devolução dos territórios e pela criação de um Estado Palestino.

Mais uma iluminada mente que se vai. Só podemos esperar que tenha sido capaz de influenciar seguidores, e que estes continuem a formar outros dentro dos seus ensinamentos.

Agora que os atuais líderes do Estado Judeu, auto proclamados representantes das ideias sionistas, insinuam não apenas não abandonar a política de colonização em territórios conquistados mas até oficializar a conquista por meio de uma anexação internacionalmente condenada e ilegal, se evidenciam ainda mais os malefícios da ocupação continuada dos territórios resultantes da Guerra dos Seis Dias; estes atos absurdos ameaçam romper a ligação outrora tão significativa com duas populações – os povos da Europa que um dia já saíram às ruas a favor do Estado Judeu e a massa judaica da Diáspora, em especial da segunda maior população judaica do mundo – os judeus americanos e em especial de Nova Iorque. 

Nas atuais circunstâncias, e tendo em vista do que a presente liderança israelense é capaz, é necessário que fique claro, que em comum com tantos outros judeus que como Sternhell, se vêem como sionistas, declaro: ANEXAÇÃO NÃO, e em especial, NÃO EM MEU NOME.

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