Há mais de um, ano Israel está envolvida em um exaustivo processo político. Os três turnos consecutivos de votação não romperam o impasse eleitoral que levaria a um quarto escrutínio que nenhum dos lados queria, se não se chegasse a algum entendimento. Ao escrever estas linhas, já são conhecidos os termos de um acordo que – definindo as condições de adesão das partes, supera qualquer imaginável exagero em matéria de corrupção e falta de escrúpulo por parte dos políticos que o assinaram.
O Primeiro Ministro Bibi Netanyahu, sobre quem pesam graves acusações de corrupção, há muitos meses vinha concentrando todos os instrumentos administrativos e logísticos de sua autoridade, toda sua tarimba e familiaridade nas relações internacionais, junto a líderes de semelhante inclinação política – para neutralizar os efeitos do processo jurídico cuja data de início já estava marcada para o mês de Março.
Para esta finalidade, que paralisou, de fato, o funcionamento do governo e do Parlamento, Netanyahu não hesitou em lançar uma campanha difamatória contra o poder judicial, contra a polícia responsável pela investigação das acusações, contra a imprensa pretensamente tendenciosa em sua cobertura das informações, contra a “Esquerda” (nome genérico para definir qualquer oposição), contra a minoria árabe, numa lamentável e irresponsável campanha para deslegitimar sua cidadania.
A seu serviço, havia um ministério constituído de medíocres bajuladores, repetidores prepotentes e agressivos de suas instruções, assentadas numa incitação sistemática contra as “elites” e os intelectuais, encorajando uma sub-cultura populista, e explorando um complexo de segregação das comunidades de origem oriental (há muito injustificado, como prova a generalizada participação delas nas camadas do governo e do desenvolvimento econômico e social).
Com este quadro de fundo, e confiante em sua astuta capacidade manipulativa para melhorar sua base parlamentar, Netanyahu provocou a dissolução da Knesset, convencido de que uma nova estrutura partidária faria passar leis que lhe conferissem imunidade frente aos processos jurídicos que o esperam, limitando a autoridade dos juízes e sujeitando-os a critérios partidários de nomeação.
No entanto, as três votações nas urnas não levaram ao resultado almejado por Netanyahu. Pelo contrário, concederam uma ínfima maioria ao partido “Azul e Branco”, encabeçado pelo ex-chefe do Estado Maior do exército Beni Gantz, que reunia alguns setores de centro, empenhados, antes de tudo, em afastar do poder a figura de Netanyahu, portadora de um longo histórico de negativo balanço.
Essa maioria se fixava também num apoio tácito da Lista Árabe Unida, que conseguiu o significativo terceiro lugar em número de parlamentares na Knesset, angariando não só as vozes da população árabe, vítima da venenosa propaganda racista e nacionalista da direita, como também a simpatia de setores liberais e esclarecidos do eleitorado judeu, revoltados por aquela condenável orientação da propaganda de Bibi; pela discriminação prolongada da minoria árabe; e pela visível tendência de calar toda opinião oposta à sua.
Mas o partido “Azul e Branco” não era um bloco monolítico e sim uma fusão tática de grupos com objetivos diferentes, por vezes contraditórios. Por exemplo, as posições extremas de alguns deles, relativas aos árabes, repetiam preconceitos sistematicamente injetados pela retórica oficial – como sendo eles hostis ao Estado Judeu e “agentes do terrorismo palestino”.
A propaganda de Netanyahu também soube se valer da figura hesitante, pouco carismática, pouco assertiva de Gantz, apresentando-o como incapaz de fazer frente às tarefas de chefe do governo.
Com tudo isto, as negociações para a formação de um governo paritário, resultado do empate eleitoral, estavam sendo conduzidas de uma posição favorável para o “Azul e Branco”, posição que poderia ser-lhe útil dentro do acordo de rotatividade que se esboçava. Segundo este, o primeiro a ocupar o cargo de chefe do governo teria nisto vantagem. E como Netanyahu se aproveitaria dela para se safar da justiça, era de esperar que “Azul e Branco” o evitasse, pleiteando para si a primazia no exercício do cargo.
Netanyahu é conhecido por sua capacidade de improvisar situações em que consegue transformar derrota em vitória. E muitos acompanhavam a negociação com ansiedade, perguntando de onde viria a surpresa desta vez. E ela veio, mais inesperada do que nunca, com a epidemia do Coronavírus.
Naturalmente, Netanyahu se aproveitou de imediato da nova realidade, não tendo dificuldade em apresentá-la como emergência que justificava um adiamento “sine die” de sua convocação ao tribunal. Para o coro de seus lacaios, foi o momento propício para acentuar a pouca preparação de Gantz e a “comprovada liderança” de Netanyahu em situações de crise.
A reação de Gantz, porém, foi a bomba que destruiu qualquer ilusão e esperança de término da “Dinastía Netanyahu”: sem prévia consulta com os demais líderes de seu partido, ele anunciou a dissolução do “Azul e Branco” e a decisão de se unir, com os 15 deputados de sua facção, ao bloco de Netaniahu. Com isto faltou ao compromisso com seu eleitorado e com os outros componentes do partido, aos quais agora só resta a alternativa da oposição.
Gantz justificou sua decisão como consequência da gravidade do momento, que obriga a concentrar os esforços pela unidade nacional. Para diminuir o impacto da decepção e do sentido de traição causada por sua improvisa reviravolta, ele se apoia na promessa da rotatividade daqui a um ano e meio: promessa em que ninguém acredita, em base à longa tradição de desrespeito aos compromissos, que caracteriza a figura de Bibi. Pouca credibilidade se dá, também, à afirmação de que a presença no governo garantiria uma linha de sensatez e o afastamento dos elementos mais extremistas, demagogos e racistas que faziam parte dos últimos governos do Likud. E as colossais incógnitas abertas pela epidemia da Corona, não contribuindo para um quadro otimista, reforçam a necessidade de um governo de unidade nacional.
Poderia continuar numa cansativa descrição das negociações; das tortuosas modalidades e implicações pessoais dessas negociações; das escandalosas concessões às exigências do Likud quanto ao funcionamento da Knesset, segundo os estreitos interesses do partido e pessoais de Bibi; quanto ao mecanismo de nomeação de juízes, que, se aplicado, virá a ser uma violação desvergonhada do processo democrático; quanto a escabrosos detalhes sobre o funcionamento concomitante de duas residências oficiais às custas dos cofres públicos, para cada um dos nomeados primeiro-ministros; quanto a mesquinhas modalidades de garantia de manutenção de poder mesmo na gestão do segundo titular. Mas o momento global reveste tudo isto de uma aurea de surrealismo. Mais do que em qualquer outro momento, isto assume um caráter de irrelevância, e o pensamento se volta para dilemas e interrogações muito mais essenciais, para analises muito mais profundas de uma existência israelense e judaica em que nos embalamos – em consenso ou desaprovação – numa inércia entorpecente.
A Guerra dos 6 dias foi um marco de violenta transformação: até 1967 Israel se moveu dentro dos moldes de um Sionismo politico, formado na tradição do ocidente europeu, enfrentando os difíceis anos de sua primeira sobrevivência com um substrato ideológico simples e direto, onde era fácil identificar os “bons” e os “maus”. A catástrofe da Shoá ainda ecoava, a Guerra de Independência ainda era uma memória próxima e traumática, o Sionismo uma causa justa, vitalmente assentada em alicerces de liberalismo e tolerância. A vitória daqueles dias não foi só um sopro de alívio de temores próximos e reais: foi o desencadear de crenças messiânicas num destino glorioso que parecia se abrir para o país e o povo. Algumas dessas crenças se materializaram no movimento dos assentamentos na Cisjordânia, liderado por uma coletividade religiosa militante e fanática; outras se revestiram da doutrina da invencibilidade militar que poderia ditar os termos de uma paz armada aos vizinhos relutantes em reconhecer a entidade sionista. E outras ainda trouxeram à tona vozes de reencontro com raízes de uma tradição alheia aos costumes do judaísmo europeu, cultora de uma Jerusalém ideal e divina, pouco sensível ao impacto da Shoá, afastada dos anseios da juventude da Palmach e da Guerra de 1948 e suas expressões na nascente cultura israelense.
No campo religioso, tomou vulto, ao lado da inflexível ortodoxia Ashkenazi, uma corrente sefardita mais maleável em algumas questões do controle sobre a vida civil, mas não menos intransigente na visão geral da sociedade e do país, nem menos interesseira no tocante à distribuição de recursos do orçamento nacional.
De todas estas direções, fomentados por um fortalecimento das concepções de direita em todos os anos do poder do Likud, foram se instituindo padrões que vem negar o Estado laico e liberal e a visão que lhe deu origem.
Os assentamentos judeus em meio à densa população árabe na Cisjordânia são hoje uma realidade insistentemente propagada pelas milícias messiânicas, mantida por um sistema de segurança opressivo e juridicamente insustentável, moralmente oposto à mensagem de moral profética do judaísmo: um judaísmo falsamente interpretado por “rabinos” pregadores de um ethos discriminatório semelhante ao “apartheid” sul-africano, indiferentes ao prejuízo que isto causa ao prestígio e legitimidade de Israel na cena mundial.
Esta situação é benevolamente aceita por uma população indiferente, mais interessada no enganoso bem-estar econômico e no pleno emprego (agora apagados pela onda da Corona) do que no constante atrito que ela provoca, com inversão desproporcional de recursos militares e financeiros e, naturalmente, com o sacrifício das liberdades da população árabe local.
A conhecida fórmula “Dois estados para dois povos”, longamente indicada como caminho para um acordo, nunca foi seriamente considerada pelos governos do Likud e, na verdade, foi relegada para um esquecimento camuflado pelo falso argumento da não-aceitação de Israel como estado judeu pela Autoridade Palestina. Enquanto isso, foram se multiplicando os casos de expansão das construções dos assentamentos, agora toleradas por uma administração Americana simpatizante, por um presidente imprevisível, por uma embaixada transferida unilateralmente para Jerusalém e representada por um embaixador judeu abertamente partidário da política israelense de direita. Mais ainda, neste contexto, Netanyahu pretende anexar apressadamente parte dos territórios da Cisjordânia no intuito de consumar o fato antes das eleições americanas.
Ao mesmo tempo, os partidos da esquerda foram progressivamente perdendo terreno, levados quase ao desaparecimento por obsoletas posições ideológicas e errôneas avaliações da verdadeira tendência da maioria – magicamente ofuscada pelo carisma de Bibi. Isto é incompreensível diante do problemático desempenho de sua liderança, por exemplo, no continuado atrito e bombardeio de alvos civis na região fronteiriça de Gaza; ou na comprovada corrupção e protecionismo a favor de grandes empreendedores às custas do patrimônio público; no afastamento dos elementos mais moderados e equilibrados de seu próprio partido; na exagerada influência concedida aos partidos religiosos descaradamente agarrados às vantagens do poder.
Talvez se possa explicar essa persistente popularidade no desconhecimento e falta de tradição democrática e parlamentar dos judeus originários dos países árabes e da União Soviética, onde regimes monárquicos e totalitários alternavam períodos de paternalística tolerância com outros de discriminação e perseguição: regimes onde a figura de um líder absoluto (ao gosto de Bibi) era o modelo aceito de poder. O panorama eleitoral se modificou então, transferindo para o setor árabe israelense um papel de maior peso e um crédito de confiança na capacidade de canalizar, através de uma colaboração parlamentar, anseios liberais e democráticos também de parte do eleitorado judeu.
Cabe aqui nos determos sobre alguns pontos relativos aos árabes de Israel. Apesar de uma longa trajetória originária de hostilidade do mundo árabe; apesar das amarras de uma tradição social e religiosa conservadora e oprimente; apesar da compreensível solidariedade deles com os palestinos dos territórios ocupados e da não sempre objetiva representação política de numerosos pequenos partidos, eles souberam fazer frente às mentiras, calúnias e incitações extremistas da ala do Likud, e se juntaram num partido árabe unificado. Contribuiu para isto uma sensata apreciação de sua realidade, que hoje mostra também encorajantes sinais de integração aos padrões de funcionamento econômico, cultural, profissional do país. A contribuição árabe, por exemplo aos quadros médicos e farmacêuticos é notória e de alta qualidade. Sente-se a presença árabe em manifestações da cultura e da arte, com um saudável senso de autenticidade. Até mesmo a disposição de uma parte do público árabe para o serviço militar ou algum tipo de voluntariado civil já não é fato excepcional. E a simpatia do público israelense pela culinária árabe e hospitalidade de seus restaurantes transborda os limites das opiniões políticas, permitindo esperar na viabilidade de um diálogo entre os lados antagônicos do conflito, no qual os árabes israelenses poderão ocupar um papel positivo.
Frente a isto, observamos uma recusa da opinião israelense em aceitar as inevitáveis concessões necessárias para a quebra do longo impasse. A posição do Judaísmo mundial é de passiva aceitação da linha nacionalista do governo israelense e não denota tendência de assumir o programa sionista muito além da atividade filantrópico-mundana de suas comunidades. Estas, é verdade, têm reagido a manifestações de violência e antissemitismo que vêm se verificando em pontos diversos da Golá (diáspora). Mas não se mostram muito ativas em tomar posição quanto às tendências de assimilação que afastam seus membros da ação sionista. O resultado – no qual o governo do Likud tem sua grande parte de culpa por sua parcialidade em favor dos ortodoxos – é um afastamento do centro vital de Israel como fonte inspiradora do Judaísmo moderno.
Em ambos os setores – o de Israel e o da Golá – vão se fortificando os círculos religiosos ortodoxos, seja os anti-sionistas “Haredim”, seja outras modalidades aparentemente mais “modernas” e abertas para costumes atualizados, mas crentes extremistas no destino divino de uma Eretz Israel feita a sua imagem.
Que sentido tem então o ideal sionista e o admirável movimento politico que carregou sua revolução por gloriosos decênios da história judaica, até à inédita renascença da entidade nacional? Que futuro espera essa criação única do espírito judaico moderno, agora por demais ofuscado pelos interrogativos da Corona?
Ainda não se sabe que transformações se darão em escala mundial, por conta da epidemia. Mas muito provavelmente uma delas será a revisão dos conceitos de nacionalidade, das fronteiras territoriais que o vírus desconhece, das divisões étnicas e raciais que caem por terra diante da condição humana comum a todos.
Também, sob este prisma, muda o acento que se dará a movimentos nacionais como o Sionismo. Ele deixou de ter o caráter de um movimento de massa voltado para a criação e fortalecimento do Estado e, hoje, atua mais como uma corrente de solidariedade com a realidade concreta de um país vivo no conjunto das nações. Menos ainda se explica o nervoso apego das milícias messiânicas à pretensa santidade do solo de Eretz Israel em nome de laços históricos que a maioria do povo cultiva com superficial conhecimento e elementar identificação. E a ocupação militar, de há muito injustificada e onerosa, torna-se totalmente absurda no cenário do confinamento de toda a população.
Abre-se, então, o campo para um diferente diálogo palestino-israelense, menos empenhado de ambos os lados em aspirações que a Corona demonstrou como frágeis e fantasiosas.
Uma vez que a fórmula dos dois estados para os dois povos perdeu sua viabilidade, será, por hora, a do estado binacional aquela que ocupará o debate político dos próximos anos. A direita, sempre empenhada em dar peso a gestos declarativos, procurará certamente impor sua visão dessa entidade binacional. Sob sua próxima gestão, pode-se prever uma proliferação de leis restritivas, nocivas e desnecessárias, como a Lei da Nacionalidade – a lei que, definindo Israel como estado judeu, efetivou uma situação de inferioridade das minorias do país – o que contradiz o texto da Declaração de Independência, onde se expressa e garante igualdade de direitos e liberdade de credos para todos os cidadãos.
Em contraposição, poderão ganhar volume as vozes que preconizam o “Estado de todos seus cidadãos”: vozes que sempre se ouviam da parte do setor árabe e que agora começam a ecoar também no âmbito judeu: se o estado que se define judeu limita as liberdades dos outros cidadãos; se ele relega a língua árabe (reconhecida como língua oficial até à aprovação da Lei da Nacionalidade) a uma categoria secundária; se opõe dificuldades burocráticas para um normal desenvolvimento de seus centros urbanos e para a urgente necessidade de construção de habitação; se continuamente restringe os recursos destinados a infra-estrutura, ensino, saúde etc.; e se paralelamente abafa a livre expressão de opinião também no setor judeu – melhor então definir o estado como “democrático” que responda igualmente às necessidades de todos os seus súditos.
Difícil imaginar que essa fórmula angarie realmente uma larga aprovação. Mas o peso da epidemia da Corona e a grave crise econômica que ela trará consigo não poderão deixar de alterar, a nível local e internacional, a escala de valores e prioridades. A opinião pública certamente não tolerará uma indefinida continuação do centenário conflito, num mundo em que fatores de peso global apagam fronteiras e diferenças longamente enraizadas.
Isto põe em foco a desesperada falta de uma liderança, de coragem e estatura proporcional aos imensos desafios que esperam Israel e o povo judeu.
Que seja, esta, uma esperança positiva despertada pela epidemia.