Em um almoço de Shabat, no ano de 1994, comecei a perceber que Itzhak Rabin, primeiro-ministro de Israel, seria assassinado. À mesa, estava eu, mais alguns estudantes de Yeshivá e os membros da família que nos convidou para a refeição. Entre uma garfada e outra, o pai da família afirmou que Shimon Peres havia assinado os acordos de Oslo porque, na verdade, era filho de uma mulher árabe. E calmamente complementou: “estamos sendo governados por um ministro muçulmano”. Estávamos, eu sei que é difícil imaginar, em fases anteriores às redes sociais. Não havia Facebook, Twitter e nem grupos de Whatsapp, mas ali eu conheci o conceito de fake news. E, em 1994, era assim que as notícias falsas se espalhavam, em mesas de shabat, em conversas de esquina, dentro de sinagogas, em pontos de ônibus, enfim. Teorias, por mais absurdas que fossem, eram vendidas como verdade por conta dos interesses políticos dos convivas.
Do alto dos meus 19 anos, fiquei perplexo com o que havia escutado. Eu sabia, e todos ali também sabiam, que Shimon Peres, ou Szymon Perski, havia nascido em uma pequena província da Polônia, hoje Bielorrússia, chamada de Wiszniew. Peres vinha de uma típica família do shtetl, as aldeias judaicas.
Então, como assim filho de árabe? De onde vinha essa história de mãe muçulmana? Diante do silêncio e da concordância dos que estavam à mesa, timidamente perguntei: “mas Peres não nasceu na Polônia?”. E o pai da família respondeu, sem se dar conta da incoerência: “mas é filho de mãe árabe”. E continuou: “o pior é Rabin, esse sim é um traidor”.
Diante de meus olhos, eu assistia a desconstrução de um líder israelense. A partir de uma ensandecida teoria conspiratória, Itzhak Rabin, antigo oficial da Haganá, comandante do Palmach, ex-chefe do Estado Maior de Israel, ex-ministro da Defesa e duas vezes primeiro-ministro de Israel era tirado do consenso. Deixava para trás toda a sua rica história como patriota israelense e passava a ser tratado como um traidor que seguia as ordens de Peres, filho de uma árabe muçulmana e transvestido de judeu. Por mais absurdo que tudo isso fosse, dali a um ano, Rabin seria assassinado por um judeus religioso nacionalista durante as manifestações pelos acordos de paz.
Eu devo dizer que, após aquele Shabat, voltei a escutar aquela teoria sobre Peres e Rabin inúmeras vezes, tantas vezes que decidir não mais refutá-la.
O assassinato de Rabin é apenas mais um assassinato político na longa lista de crimes políticos do século XX. Todos eles começam, em qualquer lugar do mundo (seja com Kennedy nos Estados Unidos, Gandhi na Índia, Sadat no Egito ou mesmo Marielle no Brasil), com o assassinato de suas reputações. Líderes passam a ser vistos como inimigos, traidores, são retirados do consenso e mortos. É verdade, Rabin teve sua reputação dizimada por adversários políticos.
Hoje, 24 anos depois de seu assassinato, devemos olhar para esse fenômeno para além de suas excepcionalidades. Matar um adversário político por interesses específicos é o caminho para o caos em qualquer sociedade. Rabin foi morto por discordar politicamente de seu assassino, e foi o clima instaurado em setores da sociedade que permitiu que Ygal Amir se sentisse pronto e respaldado para cometer o crime.
Lembrar a morte de Rabin hoje é lutar contra a violência política. É lutar contra a deslegitimação do adversário. É entender que divergências devem ser resolvidas por meio do diálogo, e não do assassinato. Em um período em que fake news e teorias conspiratórias viajam rapidamente na galáxia virtual, reforçar esse princípio é mais importante do que nunca.
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É tão Importante evitar a desconstrução de adversários políticos, como saber quem matou Rabin e garantir punição exemplar para o assassino. É importante punir quem matou Kenedy, quem matou Gandhi, quem matou Sadat e saber quem mandou matar Marielle. A sensação de impunidade do assassino político é a garantia da instabilidade democrática em sociedades diversas.