Acabamos de passar por Iom Kipur. Esse é um daqueles dias que nos faz refletir sobre infinitas coisas, inclusive sobre a nossa relação com a religião, a culpa e o ato de perdoar. É interessante que, daqui a alguns dias, chegará Sucót, uma festa judaica em que o mandamento, a mitzvá (boa ação), é ficar alegre, entretanto não vemos muitas pessoas preocupadas em faltar na escola/faculdade/trabalho para comemorar a alegria, para ir montar ou visitar uma sucá*, do mesmo jeito que se preocupam com Iom Kipur.
Trabalhando judaísmo com crianças, tenho a chance de refletir intensamente sobre Iom Kipur antes de sua chegada e esse ano escutei algo lindo de uma criança de quatro anos. Propus à criança:
– Quero fazer uma experiência. Trouxe várias borrachas e quero ver qual delas funciona. Vamos desenhar de lápis e apagar nossos desenhos com essas várias borrachas.
Assim fizemos. Desenhamos e apagamos com a primeira borracha, a segunda borracha e assim por diante. Em todas eu reclamava:
– Está vendo? Ainda dá pra ver uma linha, uma marquinha.
A criança (relembro, ela tinha quatro anos) me respondeu:
– Mas é assim mesmo, todas deixam uma marquinha.
Interrompemos a experiência e falamos sobre as marquinhas. Acho que Iom Kipur é essa tentativa de reduzir ainda mais as marquinhas, mas tem algo importante para lembrar: todas as situações deixam marquinhas.
Acredito que, no contexto do conflito israelo-palestino, também é preciso lembrar desse fato. Podemos tentar fazer a paz de diversas formas, são inúmeros os tipos de borracha ou as formas de conseguir a paz, mas nenhuma vai apagar tudo já vivemos, nenhuma vai eliminar todas as marcas. Inclusive existem algumas borrachas que atrapalham e, ao invés de apagar, espalham o grafite pela página e temos o trabalho de ir buscar outra borracha. Ás vezes temos que escrever por cima, usar a mancha a nosso favor.
Iom Kipur é uma data em que fazemos pedidos para Deus, pedido nos quais temos que ter um olhar para o conflito. Mas não pedidos para suportar mais tempo, esperando uma entidade divina agir, e sim pedidos de desculpa por ações falhas, por tentativas passadas e fracassadas, por força para encontrar o caminho certo.
Ainda no repertorio infantil (pero no mucho), tem uma história muito simples, mas incrível, que chama-se “Como pedimos desculpas”. Na história, uma criança pequena bate no irmão ainda menor, que, por sua vez, chora e se afasta do agressor. O tempo passa, o agressor deseja pedir desculpas, porém como se pede desculpas para o irmão que está brincando? Para o irmão que está comendo? Para o irmão que está seguindo sua vida. É frustrante ver o outro seguir sua vida e você não conseguir pedir desculpas. É desesperador não saber como fazer isso e pode até gerar ainda mais um sentimento de raiva e vontade de agredir mais.
Talvez o conflito israelo-palestino também passe por isso. Como pedimos desculpas para os árabes que seguiram sua vida? Como pedimos desculpas para as famílias que perderam entes por territórios que vamos devolver para conseguir a paz? Como pedimos desculpas aos árabes que estão trabalhando todo o tempo para conseguir pagar uma casa? Como pedimos desculpas à todos que estão ocupados com a guerra? E eles, como param de olhar a guerra para ver aqueles que estão ocupados buscando a borracha menos pior para essa situação? Eu não sei.
Convido vocês a perguntarem para as crianças como pedimos desculpas. Sugiro ouvi-las atentamente, muitas são especialistas no tema.
Espero que as reflexões de Iom Kippur nos permitam aceitar que sempre ficam marquinhas e que ainda não sabemos como pedir desculpas.
*Espécie de cabana construída para a festa de Sucót.