Em um ensinamento chassídico [1], o Rabi de Mogélnica diz que é somente nos céus que os contrastes inexistem. Lá, tudo compõe uma incompreensível unidade. No entanto, é aqui embaixo, no plano terreno, que as contradições e ambiguidades se manifestam, trazendo, por um lado, a riqueza da diversidade e, por outro, conflitos e incompreensões. Um exemplo vivo dessa condição contraditória chama-se Jerusalém.
Há uma série de discursos que definem Jerusalém como uma cidade “única e unificada”. Essas crenças, formadas a partir de 1967 – ano da Guerra dos Seis dias – são, a meu ver, uma fusão entre princípios judaicos messiânicos e motivações políticas de determinados grupos. Nesse artigo busco questionar em que medida esse conjunto de discursos, que situam Jerusalém numa narrativa de unidade, simbolizam um processo parcial e por consequência uma unificação artificial dentro de um cenário urbano fragmentado.
Em 2017, quando vivia em Jerusalém, presenciei as comemorações de 50 anos de sua “reunificação”. Uma volumosa marcha tomou as ruas da cidade. Famílias israelenses de direita, em sua maioria ortodoxos-modernos, vestidas de branco, seguravam bandeiras e caminhavam em direção ao Muro das Lamentações. Mas, ao invés de realizarem o caminho usual para chegar ao Muro (pelo portão de Yafo), outro caminho foi traçado. A marcha entrou pelo portão de Damasco e cruzou o bairro árabe. Naquele dia, nenhum árabe era visto nas ruas, todos os comércios estavam com suas portas fechadas e inúmeros policiais bloquearam vielas para que a marcha pudesse passar. Canções eram entoadas, crianças israelenses gritavam frases com teor francamente racista. Do alto de uma janela avistei uma mãe árabe com seus filhos olhando para tudo aquilo. Refletindo sobre essa experiência, surgiram alguns questionamentos: se aproximadamente 40% da população de Jerusalém é árabe [2] e estes não estavam participando da marcha, o que aqueles, do lado israelense, querem dizer com ‘unificação’? E qual o sentido da busca pela “reunificação”, e em que época Jerusalém esteve unificada?
Para responder a essas perguntas, é necessário que voltemos à Guerra dos Seis Dias, quando as conquistas militares incorporam cidades bíblicas, como Hebron, Belém e a porção oriental de Jerusalém, incluindo a Cidade Velha, ao território israelense. Os espaços sagrados tratados, até então, com importância secundária tornaram-se grandes ícones do movimento sionista [3]. O Muro das Lamentações pode ser experienciado dentro do Estado de Israel e, por meio de seu símbolo, é estabelecido um contato com um passado ancestral, já não tão distante. Heschel, que até então situava o Judaísmo na esfera do tempo [4], escreve em êxtase:
Julho, 1967… Eu descobri uma nova terra. Israel não é a mesma de antes. Há um grande espanto nas almas. É como se os profetas tivessem se levantado de seus túmulos. Suas palavras proclamam um novo caminho. Jerusalém está por todos os lados, ela paira por todo o país. Há um novo esplendor [5].
É nessa experiência particular aos judeus que se funda a noção de ‘reunificação’, um eco da unificação dos reinos de Israel e Judá empreendida pelo Rei David e seu filho Salomão há 3 mil anos. Sobre o relato bíblico dessa época áurea, se fundou um anseio pela redenção e o retorno, físico e espiritual, a essa Jerusalém já imaginária e inexistente. Nessa leitura tradicional, vestida com uma roupagem nacional, se proclama a ‘reunificação de Jerusalém’. Nessa ótica não se deve ler a ‘reunificação’ como territorial, urbana ou social, e sim como uma costura de tempos que distam três milênios.
Até então, nos discursos dos precursores sionistas, se percebia clara a distinção entre as crenças da tradição judaica e do ideal moderno do novo-judeu, que viria a habitar o Estado de Israel. No entanto, em meio a essa nova idealização narrada, a fronteira entre duas topologias distintas – Eretz Israel (Terra de Israel como referida na Bíblia) e Medinat Israel (o Estado de Israel numa perspectiva nacional moderna) – acabou se tornando dúbia e nebulosa. É justamente na decadência do paradigma moderno no final dos anos 60, que as duas visões sobre a terra, tradicional e secular, são interseccionadas, anunciando uma construção de sentidos que aponta para a pós-modernidade.
Nesse novo paradigma, a perspectiva bíblica e a nacional moderna começam a se misturar cada vez mais, numa espécie de fusão entre Religião e Estado. Compondo uma narrativa de unidade, e com isso fundamentado um duplo processo. De espiritualização do nacionalismo, por exemplo, quando soldados são condecorados no Muro das Lamentações. Ou mesmo em uma nacionalização da espiritualidade, quando rezas pelo Estado de Israel são incluídas na liturgia de determinadas sinagogas ao redor do mundo.
Na contramão, nos extremos do espectro judaico, essa fusão entre sagrado e profano é questionada. Tanto em alguns grupos laicos, bem como da ultra-ortodoxia judaica, passam a estabelecer zonas de oposição a esse hibridismo-narrativo, por razões claramente opostas. De um lado secular, reside a contradição de um Estado democrático possuir um viés religioso tão proeminente sem deixar de ser democrático. E pela ótica ortodoxa, reside o paradoxo teológico do restabelecimento judaico na Terra de Israel antes da redenção. Segundo a tradição Judaica, o fim do exílio e a construção do Templo só será concretizada com a vinda do Messias, que segundo Maimônides, não pode ser calculada, ou prevista. São nesses grupos diametralmente opostos do espectro judaico em que a fronteira entre Eretz e Medinat , Terra e Estado, se faz mais clara.
Ainda quando vivia em Jerusalém, durante uma caminhada pelo bairro judaico da Cidade Velha, me atentei a um cartaz com os dizeres “fotografe-se há 2.000 anos” e abaixo uma ingênua foto do Sumo-Sacerdote abençoando dois soldados de olhos fechados segurando suas metralhadoras, com o Segundo Templo ao fundo. Sobre essa cena arquetípica, é possível condensar o sentimento imaginário de unidade numa representação que, por meio de uma colagem de elementos aparentemente desconexos, reside a busca de uma síntese planificada da história judaica. Ao abreviar dois milênios em uma imagem/discurso, omite-se toda a construção rica e plural da diáspora judaica, que foi vivida no lapso entre as existências do sacerdote e do soldado.
profecia de Isaías, de que um dia Jerusalém será reconstruída e “se destacará dentre as colinas, e a ela afluirão todas as nações” [6], acabou sendo politizada e ressignificada para fora do texto e de sua leitura sagrada. E com isso, alguns descompassos entre profecia e práxis surgiram: quando certos grupos da ultra-ortodoxia criam um instituto pela construção do Terceiro Templo [7], no lugar onde hoje estão as mesquitas, se desconsidera as contradições “daqui de baixo”, em prol de uma alienada e artificial concepção de unidade. Deste modo, a profecia da reconstrução se subverte em prática de destruição de outra cultura, e a integridade almejada se transforma em segregação.
Proponho aqui, para concluir, novamente uma leitura não-monolítica de Jerusalém, que é fragmentada tanto em suas camadas históricas, bem como em seu horizonte urbano contemporâneo. A palavra hebraica ‘טל’ [tel] pode ser traduzida como ‘colina’, mas uma colina formada não por processos geológicos, mas sim por vestígios humanos sobrepostos e sedimentados. Jerusalém, com suas nove destruições e construções, possui uma espessura de sedimentos ímpar. Como as grandes cidades do século XXI, Jerusalém possui trinta denominações religiosas distintas, ao menos quinze línguas e sete alfabetos podem ser vistos e ouvidos em suas ruas, cada bairro provém de uma origem, seu tecido é um retrato plural do ensinamento do Rabi de Mogélnica. É só por meio de uma leitura fragmentária desse mosaico urbano contraditório que consigo abstrair as partes e contemplar Yerushalaim [8] em seu brilho dourado.
Notas:
[1] BUBER, Martin. Histórias do Rabi. Nenhum contraste, Página 502
[2] 2016, Israel Central Bureau of Statistics
[3] BAR, Gideon. “Reconstructing the Past: The Creation of Jewish Sacred Space in the State of Israel, 1948–1967.” Israel Studies, vol. 13, no. 3, 2008, pp. 1–21.
HESCHEL, Abraham Joshua, O Schabat. São Paulo: Perspectiva, 2000
[5] HESCHEL, Abraham Joshua, Israel an echo of eternity. Página 5
[6] Isaías 2:2
[7] https://templeinstitute.org/main.htm
[8] A etimologia hebraica para o nome Jerusalém: ירושלים [Yerushalayim] remete a duas palavras, cujos sentidos se interligam, שלום [Shalom/ Paz] e שלם [Shalem/ Completa; Íntegra]