Reflexões sobre o inédito artigo de Karl Marx referente à situação precária dos judeus do século XIX em Jerusalém

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Quando eclodiu a Guerra da Criméia em 1854, colocando a Rússia contra o Império Otomano e seus aliados Europeus, Karl Marx escrevia O Capital (Das Kapital) na sala de leitura do Museu Britânico, enquanto também se esforçava para escrever ao crítico New York Daily Tribune de Horace Greeley, numa exaustiva jornada de produção. Muitos desses artigos refletiam seu discernimento apurado sobre fatos históricos. 

Nessa época, Marx escreveu de maneira inédita sobre a situação dos judeus em Jerusalém no período do século XIX, ao final de um artigo denominado Declaration Of War – On the History of the Eastern Question, publicado no nova iorquino New York Daily Tribune em 15 de abril de 1854, escrito por ele e transcrito por Andy Blunden, onde fica claro esse seu discernimento apurado sobre fatos históricos. 

Nesse artigo, Marx descreve principalmente as complexidades quanto as condições políticas e sociais dentro do Império Otomano, que eram pouco conhecidas, até mesmo para os leitores da Europa Ocidental. Na América eram ainda menos conhecidas e esta foi a oportunidade para que Karl Marx escrevesse sobre o tema, onde também demonstra a complexidade étnica e demográfica no Império Otomano e faz uma reflexão sobre as condições das comunidades minoritárias vivendo sob esta dominação islâmica.

Como a Guerra da Criméia começou com uma disputa religiosa em torno da Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém, Marx dedica alguns parágrafos para a cidade e sua população, ao final do texto. A partir disto, parte para uma análise quanto a situação dos judeus em Jerusalém sob o domínio do Império Otomano, onde confirma que os judeus compunham a maior parte da população de Jerusalém desde 1850 – observa-se aqui que até mesmo antes do início do movimento sionista no ano de 1897.

De acordo com Marx, que se baseia no censo do Império Otomano à época, a minoria muçulmana era formada por turcos e mouros, além de árabes: “[…] a população sedentária de Jerusalém é de aproximadamente 15.500 almas, das quais 4.000 são muçulmanas e 8.000 judias. Os muçulmanos, formando cerca de ¼ do total, e compostos por turcos, árabes e mouros, são, naturalmente, os mestres em todos os aspectos […]”1.

E ainda vai além quando acrescenta de maneira bem enfática sobre a situação precária desses judeus à época, como podemos extrair do excerto abaixo:

“Nada se compara a miséria e ao sofrimento dos judeus em Jerusalém, onde habitam o bairro mais sujo da cidade, o chamado Hareth el-yahud, o quarteirão da imundice entre o Monte Sião e o Monte Moriá, onde estão situadas as suas sinagogas – eles são objetos constantes da opressão e intolerância dos muçulmanos, insultados pelos gregos, perseguidos pelos latinos e vivendo apenas das escassas esmolas enviadas por seus irmãos europeus.1

A partir disto, Marx conclui de maneira bem incisiva sobre a intolerância à época – destaco que, intolerância essa que sempre resultou na dispersão dos judeus pelo mundo. Marx ainda se aprofunda no tema, reproduzindo as palavras de um autor francês, que ele curiosamente não chega a citar o nome: “Assistindo suas mortes, eles sofrem e rezam. Seus olhares se voltam para o Monte Moriá, onde já se situou o templo do Líbano, e de onde eles não ousam se aproximar; eles derramam lágrimas sobre a desgraça de Sion, e sobre sua dispersão pelo mundo”1.

O que fica evidente é que a discriminação era exercida contra a maioria judaica de Jerusalém pela dominante minoria não judaica, principalmente quando Marx se refere a estes dominadores como – “os mestres em todos os aspectos”. Podemos dizer que este artigo é inédito dentro do pensamento Marxista por ser o único a expressar de maneira tão enfática certa empatia com os judeus, de forma inusitada.

Refletindo a partir das fontes consultadas, Marx traz esta importante informação, onde mostra que Jerusalém era uma cidade que já tinha uma população judaica relativamente grande desde pelo menos a metade do século XIX, antes mesmo do Sionismo existir. Isto pode demonstrar que uma Jerusalém judaica já existia há séculos e que ela não foi uma invenção de Israel, embora essa mesma Jerusalém deva obviamente sempre reconhecer, respeitar e principalmente preservar a tradição Árabe e Muçulmana da cidade, lá presente há também muitos séculos, fato este que parece ter caído no esquecimento das autoridades políticas israelenses do mundo atual, principalmente porque Israel anexou Jerusalém Oriental em 1980, o que foi aprovado pelo Knesset. 

Não podemos afirmar que o que atualmente denominamos direitos humanos era respeitado nesta parte do mundo antes mesmo do controverso e polêmico sionismo existir, o que destrói a ideia de que teria sido o sionismo o responsável por abalar a paz na região. A partir disto, o que se pretende frisar aqui é que se precisa desmistificar alguns aspectos relacionados ao que pensamos sobre o sionismo, no sentido de informar que já havia uma grande quantidade de judeus na região e que já não havia total coexistência pacífica antes mesmo do sionismo, o que ajuda a demonstrar a complexidade da questão israelo-palestina, que é cheia de nuances, uma delas é o fato do sionismo ser multifacetado, ou seja, de existir sionismo de direita, de esquerda, religioso, cultural etc. Por isso, deve-se ter cuidado ao criticar o sionismo, pois de que sionismo se está falando? 

Há ainda um trecho nesse referido artigo, onde Marx conta sobre o modo de vida e de moradia na época em que Jerusalém estava sob o domínio do Império Otomano, e aponta no 29º parágrafo do artigo que o europeu morre ou retorna à Europa depois de alguns anos. Os pashas e os seus guardas vão para Damasco ou Constantinopla. E os árabes voam para o deserto. Jerusalém é apenas um lugar onde cada um chega para levantar sua tenda e onde ninguém permanece.

É interessante porque podemos fazer uma reflexão a partir deste trecho, no sentido de que esses povos que dominaram Jerusalém e a habitaram tinham para onde retornar, e refiro-me apenas a Jerusalém, pois é a única cidade mencionada por Marx em seu texto, mas poderíamos ampliar o debate para o território como um todo. Desta forma, e a partir desta ilação, questionamo-nos, mas e os judeus e palestinos (trazendo para o debate atual) para onde iriam? Teriam eles um lugar no mundo para onde “retornar” e serem bem aceitos?

1 Marxists. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1854/03/28.htm. Acesso em 06 de agosto de 2017.

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