Esse texto parte das notas que escrevi para o debate sobre política na obra de Amós Oz, na Casa do Povo, num sábado de maio de 2019, em homenagem aos seus 80 anos. Ele se seguiu ao debate sobre aspectos de sua literatura, num salão cheio e atento, onde alguém lembrou que a celebração de aniversários é algo estranho ao judaísmo; nós celebramos os aniversários de falecimento, quando as pessoas já puderam, em vida, dizer a que vieram. Por isso talvez a dor pungente da lembrança dos que morrerem cedo, que não é minorada, em nossa religião, por sua possível pureza ou pela esperança de uma vida além da vida. Ela se deve às oportunidades roubadas para que a vida seja vivida, extensa e completa, com erros e acertos, com glórias e fracassos também.
O texto que preparei para a mesa de política tratava das conexões do celebrado escritor israelense com nossas próprias vidas, de judeus brasileiros e de seus leitores em geral, mas ao longo da leitura acabei sendo coberta por uma teia de conexões tão inesperadamente densa que me emocionei demais e a leitura ficou a desejar. Por isso fico feliz em poder compartilhar esse texto com o leitor, protegida pela distância da palavra escrita e impressa. Então vamos lá.
Meu interesse na obra de Amós Oz é sobretudo ética. Gosto de seus romances, mas paixão mesmo eu tenho pelo irreverente Yoram Kaniuk, autor do Life on Sand Paper, de 2003, e adoração pelo S Yizhar, cujo conto Efraim Retorna à Alfafa, de 1938, é a mais incisiva crítica que já li à opressão totalitária. Os textos de Amós Oz, Meir Shalev e outros autores israelenses têm uma doçura que às vezes percebo como etérea, que nem sempre alcanço, como se soasse à leitura um shofar distante e solene. Já Os Judeus e as Palavras, de 2012, escrito em inglês por Amós Oz e sua filha Fania Oz-Salzberger, eu leio como minha bíblia particular, leio como livro meu.
Ele responde a uma série de questões que eu tinha e, por mais leituras que fizesse, não conseguia formalizar. São questões ligadas ao judaísmo, à família, mas também à cidadania, à pesquisa, à minha docência e, de modo geral, à cultura e aos livros, claro. Por que eu entendo o conhecimento de um modo, e meus colegas de outro, não apenas diferente mas por vezes incompatível? Por que é tão difícil explicar aos meus alunos que quero escutá-los em minhas aulas e ler a visão deles nos trabalhos, e não a minha, a dos autores lidos ou, menos ainda, a de mestres que me precederam, com suas verdades mal ajambradas? Os dois velhos sofás na capa do livro nos convidam a sentar e ouvir o velho ancião ou a historiadora dedicada e tirar com cada um deles dúvidas acumuladas por décadas que não tivemos a sagacidade, o tempo – ou talvez a autorização – de ao menos perguntar. Mas vamos à homenagem a Oz.
Quando ele esteve em São Paulo pela última vez, em 2017, sua visita à Casa do Povo foi muito tocante. A impressão que tínhamos é que estava todo mundo presente; olhávamos em volta e víamos todos. Não era só muita gente, boa parte de pé, acotovelada. Eram caras familiares, rostos únicos e expressivos, como diz Georg Simmel. Estavam naquela visita também as memórias dos judeus que lutaram pela liberdade, pela cultura e por sua versão de judaísmo e de uma sociedade melhor. No momento em que li isso, senti essa presença renovada, pois no intervalo tinha encontrado pessoas que fizeram parte de minha infância, com quem compartilhei lutos e alegrias. O espaço da Casa do Povo, a um só tempo moderno e capenga, resgata um tempo distante da comunidade judaica e da cidade de São Paulo, quando uma visão de futuro inspirou ações na política, na cultura e na arquitetura. O próprio Oz, contaram, disse que se sentia muito em casa naquela construção, assemelhada a uma redação de jornal de Tel Aviv dos anos 1950. Filha de arquiteto, também a mim as estruturas belas e precisas do moderno, mas descuidadas por gente que sempre tem algo mais urgente a fazer, são minha casa, em qualquer lugar do mundo. Uma goteira, um taco solto, um livro jogado.
Em outros sábados, aqui na Casa do Povo, no Círculo de Reflexão sobre Judaísmo Contemporâneo, o clima é muito amistoso, cheio de novidades, onde palestrantes escutam as lições da platéia e parecemos todos estar num antigo cheder, atentos às idéias e protegidos das ameaças lá fora por uma mão invisível protetora. Aqui também me emocionei, pensando em todos os riscos que já passamos, no século passado, e nos que nos ameaçam agora, inesperadamente. A escola, para os judeus, é um lugar sagrado, obrigatório, mais que a fé. Como dizia minha mãe, uns têm fé demais, outros fede menos. Mas da escola ela nunca fez piada. Uma vez um amigo deixou escapar que eu havia tirado 2,0 na prova de estatística, achando que minha mãe liberal e sorridente, que fumava e bebia com eles, não ia ligar. Mas foi só fechar a porta para os amigos que ela se virou para mim brava, me mandou sentar à mesa de jantar, trouxe seus livros e começou a me dar uma aula de tabela ANOVA que até hoje está gravada na minha memória e que me permitiu tirar 9,0 na segunda prova da matéria. Essas ressonâncias todas surgem de haver no prédio desta antiga escola tanto a herança arcaica do valor do estudo quanto a herança moderna do progresso e da fé num mundo melhor, que são tanto uma responsabilidade como uma bênção para nós.
Estávamos durante a visita de Oz todos sorrindo, embevecidos pela presença de um homem mas também por tudo o que ele representava, de todo um período na história judaica e na história humana, que foi o século XX, dos sonhos, das misérias e também das conquistas, que agora nos parecem incertas. Através principalmente da Companhia das Letras, mas também da TV Cultura e de outras instituições culturais, nós estávamos ligados a essa trajetória e nos víamos em Amós Oz, pois compartilhamos com ele os seus personagens, as suas reflexões e sua própria vida, retratada no filme que seria exibido ao fim da homenagem, o belíssimo De amor e trevas. Ele, Oz, reconheceu a importância dessas ligações que são, abstratamente, com o Brasil, que é em Israel, como no mundo todo, estereotipado e um tanto exótico, mas também com uma comunidade de pessoas, de atores culturais e leitores da qual ele também se sentia parte. Havia na platéia, na visita de Oz, muitos rostos envelhecidos, mas não se enganem. Na Casa do Povo, de adolescentes a idosos, todos se sentam, perguntam, aprendem uns com os outros sábios de que cada um tem a sua sabedoria e sua curiosidade, e cada um pode saciar o outro de um jeito, seja pelas questões, seja pelas respostas. E nesse ponto também me emocionei. A tese dos Oz é de que as palavras contam, e essa asserção simples e forte parecia me impedir de simplesmente ler; eu vivia todos os significados, todas as razões que haviam me impulsionado a escrever, e todos os possíveis outros significados para quem estava lá na homenagem, gente conhecida minha, de ontem e hoje. Expliquei que no Brasil não tínhamos isso como norma, essa educação como diálogo entre pessoas, não tínhamos essa coisa básica que há nas casas, escolas e instituições judaicas e que tomamos como natural, e isso me doía como professora.
Em Os Judeus e as Palavras, os Oz falam extensamente desse “individualismo” muito particular, onde cada qual é único, é uma pessoa na qual cabe o mundo tudo, e ao mesmo tempo se equipara a todos diante da lei. Mesmo as mulheres, que têm também nome e recurso à lei, como ele explica com vários exemplos bíblicos. Uma amiga historiadora destacou a interpretação dos Oz sobre o papel das escrituras na cultura judaica, por não exigir uma genealogia material; os judeus adotaram essas heranças como sua e isso é o que importa. Para mim, o fundamental é, ao contrário, a revelação de que práticas minhas, que me são naturais, têm um passado histórico coletivo. Sinto-me como o patinho feio que se descobre cisne ao longo da leitura e releitura do texto. De toda a forma, é essa ética, do individualismo radical, digamos, que guia e deve guiar nossas ações. Pois no judaísmo a mais elevada filosofia está sempre voltada à mais comezinha das rixas, ao menor grão de cereal, aos costumes mais prosaicos. A reflexão vale o quanto ela importa, pois o que importa mesmo, sempre, é a vida.
A reflexão está então a serviço do conhecimento, do saber, e sempre para o mundo, como diz Hannah Arendt, para os seres humanos, como enfatizam os Oz. Os Judeus e as Palavras traz essa dialética feliz entre as pessoas e as idéias, uma enriquecendo a outra, uma amparando a outra, as pessoas dando sentido aos textos e os textos conectando as pessoas. As várias formas como ele e sua filha – o livro é ele mesmo um testemunho das relações humanas – vão explicando essa idéia é de uma poesia tocante, profunda, produtiva e, como eu disse, útil. É um saber útil. É um saber judaico.
Para Amós Oz e sua filha o grupo é fundamental, no que ele está junto com outros pensadores judeus modernos, como Hannah Arendt e Georg Simmel, e mesmo contemporâneos, como Elihu Katz e Gilad Lotan, estudiosos da comunicação. A importância dos laços humanos, elemento do judaísmo, é projetada para o mundo gentio, no caso desses pensadores, e no caso dos Oz as raízes dessa obsessão são redescobertas nos textos judaicos arcaicos. Penso que eles dão, em Os Judeus e as Palavras, um Guia para os Perplexos atualizado, na melhor tradição judaica interpretativa. Num mundo onde estamos divididos não entre direita e esquerda, mas entre perplexos e estupefaciados, o que há de mais político que um guia, um norte, uma bússola que não aponte talvez o caminho certo, mas sim a necessidade da companhia certa, das colaborações certas, da solidariedade certa? Uma companhia que seja inclusiva, mas que tenha princípios. Que aponte para ações firmes, mas sem intolerância. Que esteja imbuída de otimismo, mas que compreenda as limitações do possível. Penso que a grande lição do livro é uma aposta no povo, seja o povo judeu, o povo israelense, o povo brasileiro. Povo, entendido aqui não como conceito abstrato e populista, mas como grupo de indivíduos distintos, concretos, que se reúnem para ler. A visita dele a essa escola, é a meu ver, um exemplo de todo um ideal de diálogo, de comunidade, de escuta e de escrita.
O Ricardo Teperman, moderador da mesa e organizador do evento, ao lado de outros jovens que trazem um grande otimismo para todos nós, o Benjamin Seroussi, o Daniel Douek, assim como participantes do círculo, como o Gabriel Neistein, me perguntou sobre a relação de Amós Oz com a política partidária israelense. Se ele Oz, disse que sua ausência dessa forma de política era uma limitação sua, assim o devemos entender. Em primeiro lugar, pois, como ele mesmo diz, as palavras contam. Em segundo lugar, porque na nossa tradição não há mitos. Temos grandes líderes, mas todos imperfeitos e humanos. E é isso o que nos permite enxergar a beleza de cada ser humano ou, na sala de aula, de cada aluno, pois cada qual tem um enfoque, um texto interessante por si mesmo. Amós Oz não foi um político, como o foi Fernando Henrique, que deixou os livros de lado para receber em seu gabinete deputados de todo esse Brasil, ou Mario de Andrade, cujo legado institucional à cultura ainda nos alimenta. Nossas limitações não nos diminuem. Amós Oz já foi Amós Oz com o que ele fez, em seu tempo finito, ainda que longo, entre nós.
A Lilian Starobinas me pediu para conectar esse ensinamento dos Oz com os dias que correm no Brasil, e eu disse duas coisas. Em primeiro lugar, as perspectivas internacionais, como trazidas pelo João Paulo Charleaux, meu colega de mesa, são esclarecedoras, mas devemos tomar o cuidado para não nos sentirmos impotentes diante de tendências poderosas, onde apenas retomei o velho alerta de Arendt contra as tendências históricas. As estratégias de resistência podem ser locais, ainda que em colaboração internacional, pois os desafios concretos o são. Temos que ter em mente a idéia de Oz de que estamos juntos, relembrada numa leitura ao longo da homenagem, compartilhamos um espaço, e temos que agir dentro deste espaço. Esse criar o espaço, esse definir onde estamos e quem somos nós que compartilhamos um destino comum, é fundamental para que concebamos a ação, como reforçam os autores que citei anteriormente. Em segundo lugar, nesse espaço definido, temos que nos sentar à mesa, dialogar e agir. Ora, como fazer isso tudo? E aí listei três tarefas.
A primeira é dar aos jovens uma educação que coloque de lado bandeiras vazias e demonizadoras do outro, e os ensinemos a pensar com suas próprias cabeças. Acredito que estejam atacando Paulo Freire, hoje, pelas suas virtudes e o defendendo por seus defeitos. É preciso revalorizar o ensino objetivo, sem dogmatismos, e ao mesmo tempo defender o ensino democrático e plural. Estamos defendendo o Freire ideológico e atacando o Freire humanista e precisamos sair dessa rota perversa. Em segundo lugar, precisamos nos sentar à mesa com um texto a ser lido, como fizeram nossos antepassados há gerações. Estamos nos digladiando sem textos! Estamos discutindo questões importantes, como a reforma da previdência, com base em epítetos jogados de um lado ao outro, e não em torno de números, textos, interpretação, consequências para as pessoas. Sem o texto vamos estar legitimando a violência que nos fizeram, a nós brasileiros vindos da África ou cristãos-novos, de quem foi roubada a possibilidade de leitura e de escrita, seja pela Inquisição, seja pela escravidão. Deus deu as tábuas da lei para que atravessássemos o deserto, mas quem deve se sentar e compreender o que está em jogo a cada projeto de lei somos nós. Temos que estudar, fazer contas, falar com especialistas e formar nossa opinião própria, sem andar em bando, se for para levar à sério o que dizem os Oz e o que, na minha opinião, diz a tradição judaica. Posições políticas não são questão de identidade, são questões éticas que exigem estudo. A identidade, no sentido de conexão com o judaísmo, está ligada à adesão a um conjunto de normas e um pertencimento a um grupo, mas não às ações, que são de responsabilidade individual e às vezes contrárias ao consenso do grupo. Finalmente, a questão político partidária: a tragédia que é a eleição do presidente da república atual não é um fenômeno supra-humano, que segue leis próprias que não controlamos. Ela se deu pois os sociais-democratas brasileiros, que incluem desde os defensores das liberdades individuais do PSOL até os defensores da liberdade econômica do DEM, mas que foram até 2018 fundamentalmente representados pelo PT e pelo PSDB, entraram numa luta fratricida que abriu espaço para discursos anti-democráticos e anti-liberais, uns deslegitimando os outros in totum, ao invés de elaborarem críticas pontuais e, novamente, pautadas em dados. Mesmo depois das eleições, continuou o uso das palavras para criar muros entre os grupos, e não para criar pontes entre as pessoas. Dei o exemplo no neologismo “ditadura civil-militar”, que apenas exclui os leigos da discussão, colocando o falante num grupo iluminado que conhece a verdadeira natureza do regime de 1964. Devemos parar de chamar os liberais de fascistas e os socialistas de petralhas e ter a coragem de nos sentar à mesa, não para tolerar ou mesmo para conceder, mas para aprender com o texto juntos, e só então passarmos para a luta política de interesses divergentes.
O cheder não é a política, e fazer da escola um lugar político é sempre desastroso. Agora, o cheder é um modelo para a pré-política, para a formação do círculo de reflexão, para o lugar onde nos sentamos como grupo e tentamos, com um dado comum – um texto, um projeto de lei, um plano de paz, uma tabela estatística – pensar juntos e compreender o significado daquilo para cada um de nós e para o grupo. A luta política depois do estudo é ácida, é dura, mas é legítima e é produtiva.
A lição de Os judeus e as palavras para o Brasil de hoje é, portanto, a de pararmos de usar opiniões como plataforma de antagonismos de grupo e passarmos a usar as palavras como laço de um povo que está junto há 500 anos, que já agiu junto em momentos dramáticos de sua história, e parece se desmilingüir nas redes sociais, sem mesmo saber mais quem é, afinal, esse “nós” tão precioso que é o povo brasileiro.