Lembrar para não esquecer

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Com essa frase, recebemos o dia de Iom Hashoá que tem início hoje (01/05). Esse dia da Memória da Shoá, o Holocausto nazista, responsável por um dos maiores genocídios do século XX, marca a importância da memória frente a acontecimentos extremos de barbárie. Lembrar para não esquecer, para não permitir que nada parecido se repita com os judeus e com qualquer ser humano.

A questão da memória é complexa e nos coloca várias perguntas sobre a dinâmica entre lembrança e esquecimento que está contida no título desse texto. Existe aquilo que deve ser lembrado como forma de resistência ao esquecimento. Existe aquilo que deve ser esquecido para garantir a possibilidade de um sujeito, vítima de uma situação traumática, poder encontrar novas possibilidades de se reinventar e se recriar. E há também uma dimensão do que jamais poderá ser lembrado e do que jamais poderá ser esquecido.

As vozes das testemunhas foram os primeiros documentos da barbárie que o mundo conheceu. Primo Levi nos conta no prefácio de seu primeiro livro “É isto um homem?” escrito em 1947, como pensar em testemunhar foi uma forma de sobreviver aos horrores dos campos de concentração nazistas. “Se não de fato, pelo menos como intenção e concepção, o livro já nasceu nos dias do campo. A necessidade de contar “aos outros “, de tornar “os outros” participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior. Daí seu caráter fragmentário: seus capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência.” (as aspas são do autor).

Aqui, Primo Levi, responsável por uma obra testemunhal e literária de importância fundamental para a compreensão da Shoá, nos fala do que jamais pode ser esquecido. O lembrar e a busca por encontrar palavras para falar daquilo que muitas vezes foi da ordem do inominável na vida dos campos, ganhou em sua vida e obra a força de um impulso vital. Com sua capacidade de observação e a lucidez mantida mesmo em situações de sofrimento extremo, entendeu o poder terapêutico das palavras e a necessidade da transmissão da história. Fez um grande esforço que foi vital para ele e para as futuras gerações, de contar, de fazer o outro participar do que foi a vida em Auschwitz. Sua crença na importância de lembrar e buscar uma forma de transmitir ao outro humano, até mesmo aquilo da ordem da desumanização, está aqui colocada. Ele se recusou a ser engolido pela lógica desumanizante que produz um vazio no pensamento, mantendo-se conectado consigo mesmo e acreditando na importância do vínculo com o outro. Não desistiu de compreender as atrocidades que viveu e não deixou de acreditar no encontro com o outro com seu potencial transformador de gerar novas inscrições simbólicas para todos.

No caso da Shoá, o que jamais poderá ser lembrado refere-se aos milhões de vidas que foram precocemente ceifadas, jogadas em valas comuns, queimadas em fornos crematórios ou vítimas de todo tipo de violências arbitrarias e inomináveis, produtos da barbárie. Sabemos de muitos esforços feitos pelas próprias vítimas para deixar registros de suas histórias. Temos a história dos arquivos do Oneg Shabat, um grupo de judeus que viviam no gueto de Varsóvia e que liderados por Emanuel Ringelblum fizeram um heroico esforço de registrar tudo que vissem sobre a vida nos guetos. Ringelblum tinha a compreensão e a intuição de que a narrativa da guerra seria daqueles que a contassem. Caso os nazistas vencessem a guerra que travavam contra os judeus e contra a Europa, seria a sua versão da guerra e a visão nazista dos judeus que seriam conhecidas pelo mundo. Colocar em palavras que registrassem o olhar dos próprios judeus sobre si mesmos, foi a forma que encontraram de lutar contra a narrativa nazista de que os judeus eram um povo sujo, infecto que contaminavam a sociedade por serem pertencentes a uma raça inferior. Os arquivos foram escritos e enterrados em latas de leite durante a guerra para serem preservados e protegidos e poderem ser reencontrados no pós-guerra. Alguns foram recuperados após a 2a Guerra pela única sobrevivente do Oneg Shabat, que conhecia uma das localidades onde as latas de leite estavam enterradas. Uma outra parte, apareceu quando os operários da construção de um prédio em Varsóvia esbarraram acidentalmente com as latas de alumínio enterradas. Alguns arquivos ainda não foram recuperados. Aqueles judeus correram risco de vida para poder registrar a sua história. Para poderem ser escutados na sua voz, escrita nas palavras deixadas nos seus textos. Lutaram pelo direito de contar e transmitir a sua história.

Através desses registros, de relatos de testemunhas e do trabalho de historiadores podemos conhecer muitos dados sobre o que foi a máquina de extermínio nazista. Conhecemos muitos nomes daqueles que pereceram na Shoá, muitas vezes falados em cerimônias de nomeação, mas temos consciência de que nunca saberemos para além desses nomes os traços singulares de suas histórias. Para todas as vítimas, criamos formas de homenagem sempre que possível em datas como Iom Hashoá ou em momentos religiosos onde rezamos em memória dos nossos mortos. Não são poucos os esforços de homenagear e lembrar. Mas sabemos que há uma parte da memória que não pode ser acessada. Não temos como lembrar daquilo que nunca foi registrado apesar de todos os esforços. Não podemos lembrar do que não conhecemos. Não conhecemos as milhões de histórias singulares que estarão para sempre perdidas. Essa perda é irreparável. Todas essas pessoas foram caladas pela violência e pelas atrocidades a que foram submetidas. Compreendemos como, apagar individualidades e calar a palavra é uma forma de violência. Uma das formas de lutar contra a violência, como nos ensinam Primo Levi e aqueles que lutaram para deixar sua narrativa da história escrita, está em poder transmitir a história, em não se deixar calar, em compartilhar traumas individuais e coletivos. A sobrevivência da memória é uma forma de resistência e para isso precisamos construir formas de  ransmissão entre as gerações. Nessa construção, precisamos estar atentos ao risco de deixar a memória atrelada ao passado e relegada apenas a dias específicos, cerimônias, rezas ou monumentos. Essa forma de memória perpetua o traumático da Shoá e mantém o passado vivo no presente sem poder olhar em direção ao futuro. Precisamos encontrar formas de transmissão que respeitem a temporalidade da memória e a continuidade que pode dar lugar ao novo de cada geração. Assim podemos transmitir o passado de forma a oferecer novos significados para o presente em direção ao futuro. A memória da Shoá testemunhada, preservada, escrita, arquivada, que já foi esquecida e lembrada pode permitir as novas gerações, a construção do seu legado ressignificando suas questões nos tempos dessa transmissão.

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