A União dos Escritores da URSS (APN), em 5 de fevereiro de 1971, publicou um documento produzido durante a tradicional Mesa Redonda que tinha como intenção denunciar ao governo da Bélgica a Conferência Sionista de Bruxelas. Para isso, foi reunido, em média, dez judeus que tiveram alguma experiência com o Sionismo ou com o Estado de Israel para a produção da denúncia contra a organização sionista. O que nos interessa desse documento, em primeiro lugar, é perceber a persistência de determinados posicionamentos políticos sobre o sionismo até os dias atuais, provenientes dos discursos progressistas e de esquerda, em segundo lugar, identificar as inúmeras vivências dentro do Estado de Israel por meio dos relatos dos judeus.
A Conferência de Bruxelas, construída por meio de uma organização sionista, tinha como uma das pautas defender os judeus soviéticos de supostos ataques provenientes da própria URSS. A Conferência aconteceria em 23 de fevereiro, mesma data em que se comemora o dia do Exército Soviético e por isso mesmo foi considerado uma afronta, simultaneamente às denúncias de exclusão e massacre do povo judeu promovidos por autoridades soviéticas.
Para se opor às denúncias, Isaak Mints, intelectual e comissário do Corpo de Cavalaria Soviético, afirmou que a URSS lutou pelos direitos dos Russos, Ucranianos, Armênios, Judeus e Uzbeques. No entanto, a própria Conferência deveria ser impedida de acontecer, pois, segundo Mints, as raízes do sionismo e do antissemitismo são as mesmas: o imperialismo. Para os representantes da URSS, o problema do sionismo enquanto um nacionalismo judaico é que deve ser combatido em nome do fim dos nacionalismos, pois a separação da identidade judaica era fruto de uma suposta autonomia nacional-cultural e, o pior de tudo, “trazia consigo o mal de Hitler ao ressuscitar o fanatismo racista” reiterou Henrich Borisovich. Portanto, não poderiam ficar indiferentes perante um nacionalismo que não fosse o soviético, na lógica de que todo nacionalismo é sectário e prejudicial menos aquele no qual a URSS faz parte.
A interpretação do sionismo que se fez mais presente, dentre as apresentadas, foi a de “aquellare”, para utilizar a expressão de Arón Verguelis, que é basicamente a denominação para as reuniões de bruxas que se encontravam secretamente e partilhavam das receitas de magia. A ideia que perpassa esse conceito, muito presente nas definições de sionismo neste documento da Mesa Redonda, é justamente o componente da conspiração.
Para endossar a crítica ao sionismo a União Soviética não poderia expor somente os elementos da conspiração e do suposto racismo sionista, o componente econômico estava muito presente e era sempre importante enfatizar as relações entre Estados Unidos e Israel e como esse último dialogava com autoridades de países na contramão da ideologia soviética, como por exemplo: Guilherme II, o Kaiser alemão e Pleve, o ministro czarista. Portanto, a Terra Prometida era como qualquer outro país capitalista, pois o “sionista era o dono da fábrica” e os interesses eram meramente mercantilistas. A migração da população judaica soviética para a Terra Santa refletia a necessidade da mão de obra para construir Israel, já que os judeus estadounidenses poderiam contribuir apenas com dinheiro e armas sem a necessidade de migrar.
A União Soviética, além de prezar por sua imagem de acolhedora dos diversos povos estava preocupada com a possibilidade de uma migração mais massiva dos judeus soviéticos para Israel. Todos os relatos do documento da Mesa Redonda asseguravam que Israel era o pior dos mundos. Alexéi Fishkin afirmou que Israel era pior que os guetos, pois no primeiro ficou preso por sete anos, enquanto no segundo ficou apenas 17 dias. Nos relatos aparecem, como tentativa de desmoralização do Estado de Israel e do governo de Golda Meir, algumas evocações dos mitos que construíram Israel – a reunião dos “irmãos de sangue” cujo território lhes pertencia a partir de uma ligação histórica com a terra e que mesmos os judeus espalhados pelo mundo tinham como pátria Israel – com absoluto desprezo e acusações de mentiras que os sionistas contaram. A invocação do mito do Holocausto aparece apenas no relato de Brom Leia, ao afirmar que a vida nos campos de concentração era melhor que viver em Israel. Os relatos de Grigori Lapidus, Riva Vishikina, Polina Guelman, David Dragunski e Mijail Goldstein estavam apoiados na mesma argumentação dos anteriores, com divergências apenas nos tipos de situações vividas.
Há reflexos muito atuais em todo o documento, como por exemplo, as condenações muito presentes nos discursos que afirmam ser herdeiros de uma cultura soviética de construção do socialismo, que deslegitimam quase a totalidade dos sionismos existentes sem se preocupar com a variedade dos discursos. Podemos encontrar os mesmos mitos evocados da questão da terra e das alianças formadas com países poderosos, nos quais forjam uma grande rede de conexões invisíveis com uma abrangência de ordem mundial, principalmente os mitos criados a partir da experiência do Holocausto que é reavivado nos enunciados de diversas maneiras, pejorativas ou de lamento, como uma carta coringa que restringe a margem de manobra de qualquer contra-argumento. Portanto, a memória produzida sobre Israel atravessou as décadas dos principais focos de ataques, no qual a atualização mais contundente precisa ser enfatizada e estava completamente apagada no documento soviético, que é a situação dos Palestinos que foram e ainda são vítimas de massacres e expulsões dos inúmeros governos israelenses.