Para um racista, pouco importa a história do seu alvo de preconceito, pouco importa os sonhos, as idiossincrasias e as visões de mundo de seus alvos. O que há é desumanização. Desumaniza-se pois o preconceituoso já tem todas as respostas, que são blocos de concretos fixos e sem fissuras.
Não há possibilidade do seu alvo ser outra coisa a não ser uma coisa digna de ser odiada. Pouco importa se há alguma característica, do seu alvo de preconceito, que faça cair por terra as teorias que edificaram seu ódio. O preconceituoso já sabe como é o seu alvo porque o conheceu da maneira mais falaciosa: no seu próprio imaginário. O imaginário do preconceituoso usa as fantasias mais caricatas sobre como alguém pode ser e as insere em algum alvo escolhido.
Nada na vítima de qualquer preconceito – sejam LGBTs, Negros, Mulheres, Árabes e Judeus– justifica o preconceito do preconceituoso. Não é um problema da homossexual se alguém se incomoda ao ver duas mulheres se beijando. Não é um problema da mulher o tamanho de sua saia se ela é estuprada. Não deve ser um problema do negro quando não se enxerga a beleza nele por que é seu “gosto pessoal”. Não é um problema dos árabes se qualquer desconfiança de uma violência arbitrária possa ser proveniente dele. Não é um problema dos judeus, caso achem que ele – por essência – seja traiçoeiro e dono de fortunas. Como afirmou Jean Paul Sartre, o antissemita cria o judeu.
A diferença é que no judaísmo, ou na judeidade, não está explícita de imediato uma identidade. A sensação do antissemita ao detectar a presença de um judeu é que no fundo ele sempre esteve ali bisbilhotando, era um intruso, um estrangeiro pronto para causar desavenças e deve ser alvo de desconfiança. Afinal, para as teorias antissemitas contemporâneas, o Judeu é aquele que bagunça uma ordem e automaticamente toma o poder.
Entretanto, há uma reformulação de algumas perspectivas antissemitas que têm se aproveitado de críticas ao governo de Israel para a promoção de um ódio maior à representação do judeu. Há algumas declarações que se afirmam antissionistas mas que, no entanto, tangem mais um ataque à etnia do que a um nacionalismo. Há casos, por exemplo, de um antissemitismo velado que concebe todo judeu como um reprodutor de um sionismo específico. Isto é, o judeu imaginário, em qualquer lugar, passa a ser, de maneira automática, um reprodutor de um sionismo também imaginário. Aqui há um problema na compreensão dos termos (antissemitismo e antissionismo) que acabam por confundir alguns desavisados ou, no pior dos casos, desonestos.
Recentemente, as redes sociais foram alagadas de comentários antissemitas depois da vinda dos soldados israelenses para auxiliar nas buscas em Brumadinho, após o rompimento da barragem da empresa Vale. Aqui, veja bem, não são críticas ao governo de Israel ou ao processo de militarização de uma sociedade ou às relações entre Benjamin Netanyahu e Jair Bolsonaro. São antissemitismos claros e explícitos, como por exemplo o uso de caricaturas de Judeus com rostos maléficos, riso cínico, nariz e orelhas grandes, traços muito utilizadas nas propagandas da Alemanha nazista.
Surgiram também teorias conspiratórias sobre a chegada desses israelenses, como se algo estivesse por trás da vinda dos soldados, algo que estivesse sob o assoalho, que não vemos e não sentimos. De novo, não eram as inúmeras críticas à utilização da ajuda humanitária como possível publicidade do governo de Netanyahu, mas sim à figura do judeu.
Por exemplo, a constatação de que o presidente da Vale, por ter sobrenome judaico, estava ligado aos soldados israelenses que chegaram no Brasil, une a noção antissemita de poder financeiro dos judeus à noção de estarem sempre à espreita conspirando com outros judeus que se aproveitam das catástrofes para agir.
Essas afirmações historicamente são sustentadas pela extrema-direita que pouco compromisso tem com a veracidade dos fatos e com os direitos humanos. O choque nesses últimos dias foi a quantidade de antissemitismos reproduzidos por setores da esquerda que atuaram na lógica de crítica absoluta a Israel e suas possíveis representações, como se a redenção da Palestina coubesse em linguagem de ódio aos judeus sem uma preocupação com as caricaturas do antissemitismo.
A parcela da esquerda que permaneceu calada frente aos ataques diretos à população judaica tornou o silêncio ainda mais ensurdecedor. A inaceitabilidade de qualquer tipo de racismo, principalmente provenientes da esquerda, deveria gerar uma preocupação maior com o alvo dos ataques e menos com a indisposição que possa se criar com outros segmentos da própria esquerda.
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Assim, cabe parafrasear Franz Fanon: o racismo contra negros não pode ser um problema só da população negra, assim como o antissemitismo não deve ser um problema só dos judeus. Esses elementos têm a ver com a humanização de todos os envolvidos, ou seja, aqueles que reproduzem o racismo, aqueles que assistem calados, aqueles que reagem e aqueles que são os alvos.
Foto: Israel Defense Forces