Chanukka (cuja grafia transliterada assume qualquer forma), é costumeiramente denominada a chag (ou festa) das Luzes. No entanto, a tradução literal da palavra em hebraico é algo como inauguração, ou reinauguração.
O motivo para tanto é histórico.
O evento que deu origem à referida festa remonta ao período helenístico, em que os diádocos (generais) do caído Imperador Alexandre, o Grande, assumiram porções de seu extinto império. O território que hoje é Israel ficou sob ocupação do Império Selêucita tomado do império Ptolomeico – durante o período lembrado nessa chag.
Não que seja importante, mas o próximo grande império a dominar a região foi o Romano, período em que houve a reforma, a destruição do segundo templo e a consequente Galut (exílio) que terminou, em parte, apenas em 1948 com a fundação de Medinat Israel (sob uma perspectiva não teológica, pelo menos).
Isso é interessante porque, de maneira geral, os judeus nos impérios helenísticos (três ao todo, dentre os quais o próprio Ptolomeico) prosperaram cultural e economicamente. No entanto, com a ascensão de Antíoco III (rei selêucita) a liberdade religiosa sofreu abalo: profanação do Templo com rituais impuros segundo a lei judaica (fala-se em sacrifício pagão de animais, inclusive de porcos).
O resultado foi uma guerra de revolta, liderada pelos Macabeus, e uma proposta de repurificarão do templo com azeite, cuja quantidade seria suficiente apenas para um dia e durou oito dias (segundo os ensinamentos tradicionais, por milagre).
Daí o nome reinauguração. Reinauguração do Templo.
Veja que os cortes históricos das festas judaicas são úteis para que possamos desconstruir, ou resignificar, os mitos por trás delas. Os heróis passam a ser vistos como seres humanos como nós, e assim podemos compreendê-los. É interessante fazer este exercício, pois milagres, intervenção divina ou até mesmo a precisão dos detalhes fáticos que se repetem durante as comemorações, são temas ricos, mas, em última análise, atinentes à fé de cada um. Não cabe a ninguém advogar pela veracidade ou mentira. Está num plano estranho à racionalidade e, nem por isso, menos real. É totalmente pessoal.
Por outro lado, algo há de muito real na história de Chanukka, e em todas os outros mitos do judaísmo: moldam a forma de pensar do judeu.
Diferentemente da travessia do mar vermelho em Pessach, por exemplo, a ocupação Selêucita e a guerra dos macabeus é um fato histórico que comprovadamente existiu (não nos detalhes, mas no mínimo pelo contexto), no entanto, nem para todo objetivo é necessário desvendarmos as verdades fáticas dos eventos por trás das chagim.
Afinal, a lembrança tradicional desses eventos nos mostra o quanto a formação antropológica do povo judeu vive, respira, se inspira e olha a si mesmo sob uma perspectiva de ocupações militares e intolerância religiosa constantes no seu passado.
Cita-se Chanukka, cita-se Purim, cita-se Pessach, cita-se a Shoá (ou Holocausto) e percebe-se que o destino do povo judeu sempre fica à mercê da tomada de poder de um tirano em meio a um desenvolvimento cultural rico.
Havia dito não ser importante, mais acima no texto, mas na verdade é: em seguida aos eventos de Chanukka, Heródoto, romano, constrói o esplendor do Beit Hamikdash, e o Imperador Vespasiano, também romano, destrói o templo e exila o povo judeu.
É, na verdade, uma constante inconstância que se repete quase que fatidicamente, e os judeus, quando livres, passam a entender essa experiência como efêmera.
Por isso que, a despeito da tese de Shlomo Sand sobre a “invenção” do povo judeu, deve-se questionar até que ponto qualquer povo não é inventando, e mais do que isso, refletir o quanto que a história e a nossa forma de pensar é que nos dão essa identidade. Inventada ou não, mas real de todo jeito.
Não somos um povo ocidental. Nossa filosofia foi influenciada por, mas não é grega. Nossos costumes em boa medida se adaptaram ao longo dos séculos e abraçamos os valores iluministas de liberdade e tolerância, mas temas que, para o mundo eurocêntrico, só passaram a fazer parte de suas reflexões e questionamentos no período entre guerras, como ocupações militares e luta pela manutenção da tradição, para os judeus fazem e sempre fizeram parte de seu ethos (identidade coletiva) desde que se entende como um coletivo.
Onde ficamos, nesse dilema, então?
Num riquíssimo texto coordenado por Maria Olympia A. França, Betty Bernardo Fuks, na obra “Freud – A cultura judaica e modernidade”, lembra que em hebraico o verbo “ser” não assume o presente. O judeu “foi” e “será”, nunca “é” e, portanto, está com contínuo movimento e mudança, mas sempre arraigado naquilo que um dia foi.
Passado e presente dialogam de forma não só complementares, mas verdadeiramente contraditórias, convidando esse povo “inventado” a nunca deixar de refletir, e se reconstruir. Ainda que, e sobretudo, sobre temas tão sensíveis.
Talvez nesse furacão de pressupostos sobre os quais partimos, por demais das vezes nem sempre conscientes, a ideia seja mesmo tomarmos o exemplo dos macabeus. Não somente a linda e mais óbvia metáfora de trazer luz onde há escuridão — mas a literalidade de Chanukka de trazer reinauguração. Entender que reinaugurar não é fazer igual, mas também não é fazer diferente.
Chanukka nos ensina a abraçarmos nossa bela contradição judaica para resignificar o mundo que nos rodeia. E talvez seja mesmo essa a fórmula para imortalidade de uma cultura tão complexa, e de um Estado tão forte e inspirador, o qual, como não poderia ser diferente, também guarda suas próprias contradições e necessidade de reinauguração.