O movimento de mulheres contra a violência de gênero em Israel e uma breve perspectiva histórica do feminismo israelense
Milhares de mulheres se reuniram noite passada, 4 de dezembro, na Praça Rabin, em Tel Aviv, quando as manifestações de um dia inteiro chegaram ao seu clímax. A greve nacional que mobilizou ações desde a manhã de ontem foi chamada por organizadoras do movimento “Degel Adom” (Bandeira Vermelha) pelos direitos das mulheres, em protesto contra a falta de ação do governo em relação à violência doméstica. O movimento recebeu apoio de grande parte das autoridades locais, assim como de empresas, organizações e instituições de diversos setores. Os municípios de Jerusalém, Haifa, Beer Sheva, Ramat Gan, Modi’in, Rishon LeZion também aderiram à mobilização.
Mulheres protestam em repúdio à violência contra as mulheres em Jerusalém (crédito: Marc Israel Sellem – JPost)
Segundo dados coletados pela Organização Internacional Sionista Feminina (WIZO), desde o início de 2018, pelo menos 23 mulheres foram assassinadas – o maior número desde 2011. As estatísticas também mostram que nos anos de 2017 e 2016, 16 mulheres foram assassinadas a cada ano, um aumento considerável. Várias deputadas propuseram a criação de uma comissão para investigar a falta de ação das autoridades, o que não foi aprovado pela coalizão. Por isso, as manifestações tiveram intenção de pressionar o governo de Bibi Netanyahu a lidar com o tema de forma mais apropriada e a liberar o subsídio prometido para a implementação de políticas públicas nesse sentido.
Assim como em outras sociedades marcadas pela dominação patriarcal, a luta da mulher israelense por igualdade e maior espaço e inclusão na esfera pública tem caráter histórico. Segundo levantamento da Inter-Parliamentary Union, as mulheres ocupam 27% das 120 cadeiras do parlamento israelense, muito menos de um terço, contrariando o fato de que compõem mais de 50% da população. Mais mulheres nos espaços de decisão e de poder alavancariam as pautas pelos seus direitos.
Os protestos contra a violência doméstica e assassinato de mulheres no país, que se iniciaram na semana passada e se fortaleceram com a greve de ontem, apenas denunciam o mito da igualdade de gênero em Israel, um mito que se construiu desde muito tempo, reforçado, por exemplo, pela figura da Primeira-ministra Golda Meir, no final da década de 1960, quando a presença feminina nas esferas de decisões públicas era de apenas 7%. Golda foi a primeira e, até hoje, a única mulher a ocupar o cargo.
A luta pela ampliação do papel e dos direitos das mulheres na sociedade israelense não é de hoje. A primeira onda feminista em Israel começou já com as primeiras levas de imigração para a Palestina, inspirada principalmente pelos movimentos feministas socialistas europeus, no início do século XX, e teve seu ápice entre os anos de 1919 e 1926. No período do Yishuv*, quando Israel ainda era um proto-Estado, as mulheres lutaram pela garantia de participação e voto nas instituições recém surgidas. Contudo, elas teriam alguns de seus direitos garantidos, como votar e ser votada ou ocupar cargos de direção apenas mais tarde, com a criação, de fato, do Estado de Israel, em 1948, quando a Declaração de Independência garantiu oficialmente a “[…] total igualdade social e política para todos os seus cidadãos, sem distinção de raça, credo ou sexo” (Declaração de Independência, 1948), entrando em maior consonância com os ideais sionistas de igualdade.
Uma segunda onda feminista, durante a década de 1970, lutou pela inclusão da mulher na agenda nacional, incluindo temas como violência contra a mulher e o aborto nas discussões do parlamento. No final da mesma década, em 1978, um relatório a respeito da condição feminina foi elaborado por uma comissão de cem mulheres, com 241 recomendações ao governo a fim de promover a igualdade de todas as mulheres da sociedade israelense. Na década seguinte, apenas 41 recomendações foram seguidas (Herzog, 2009 apud Barkay, 2016).
A intelectual feminista, Lesley Hazleton, escreveu em 1978, “As israelenses se movem em uma realidade masculina sob a falsa aparência de serem iguais”. Por trás do ideal pintado da mulher forte e bronzeada que forjou um Estado com as próprias mãos, que empunha armas e é capaz de pilotar caças, esconde-se a mulher que sofre opressão e violência cotidianamente, aprisionada por uma pretensa “empatia religiosa”. Segundo dados da Israel Women’s Network (uma das principais organizações feministas do país), 42% das mulheres ultraortodoxas apanham de seus maridos e 24% sofre violência sexual. Nos últimos 20 anos, 378 mulheres foram assassinadas por seus parceiros.
Dessa forma, emerge uma questão importante no que tange ao status da mulher na sociedade israelense: o monopólio político, cultural e religioso intentado por grupos ultraortodoxos, processo impulsionado agora com a aprovação da polêmica lei do Estado Nação, que atribui um caráter estritamente judaico a Israel – beneficiando, em geral, políticos judeus nacionalistas, grupos judaicos ultrarreligiosos e grupos nacional-religiosos em detrimento de grupos seculares e cidadãos árabes –, o que barrará ainda mais as pautas para o avanço de movimentos progressistas por direitos de minorias étnicas e políticas.
As diversas conquistas e surgimento de movimentos de mulheres em Israel, tais como o Israel Women’s Network, as Nashot haKotel (as Mulheres do Kotel, uma organização que luta pelos direitos das mulheres no Muro das Lamentações), a Organização Internacional Sionista Feminina (WIZO), ou o movimento de mulheres ortodoxas que ousaram escrever midrashim (exegese das escrituras judaicas) a partir de sua perspectiva, encontraram com o passar dos anos até os dias de hoje muitas pedras em seus caminhos. Processos como a “revolução da castidade”, que iniciaram no país um retrocesso contra as conquistas sociais se estabeleceram aos poucos, quando, por exemplo, foram criadas linhas não oficiais de ônibus “kasher”, nos quais mulheres eram obrigadas a se sentar na parte traseira do transporte público.
O feminismo se tornou, então, não apenas pauta, mas um desafio moral e ideológico para a ultraortodoxia e grupos judaicos mais tradicionalistas, num país em que a religião tem conquistado cada vez mais espaço no âmbito político. Os haredim**, uma classe que décadas atrás acreditava-se que desapareceria, têm se multiplicado e ocupado o parlamento formando coalizões com o governo, que pende cada vez mais à direita, obtendo grande poder e controlando aspectos essenciais dos direitos dos cidadãos, como leis relativas a casamento e divórcio. Os ultraortodoxos, ao mesmo tempo em que religiosamente rejeitam o Estado, sobrevivem de acordos em troca de votos, num movimento de retroalimentação.
Quanto tempo mais Israel sobreviverá se não incluir a mulher de vez em seu sistema cultural e político de forma plena? É necessário resgatar os verdadeiros valores que forjaram as bases do Estado e nesse sentido as mulheres estão no front, mas precisam estar também ativas nas tomadas de decisões dos rumos do país. Do contrário, os avanços serão soterrados pelos retrocessos fazendo crescer a sensação de aporia, de um não sair do lugar. E não foram essas muralhas que chamamos liberdade.
* Hayishuv Hayehudi b’Eretz Yisrael (em português: “o assentamento judeu na Terra de Israel”)
** O termo em hebraico Haredi quer dizer “temente” ou “temeroso”. Este se refere ao judeu praticante do judaísmo ultraortodoxo.
Bibliografia consultada:
http://archive.ipu.org/wmn-e/classif.htm
http://www.pazagora.org/1948/05/declaracao-da-independencia-de-israel/
https://www.dw.com/pt-br/1969-golda-meir-assume-como-primeira-ministra-de-israel/a-781870
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2016000100004&lng=pt&nrm=iso
http://www.conexaoisrael.org/mulheres-em-israel-uma-questao-de-sensibilidade/2011-12-14/marcelo