Para se manter seguro em uma região hostil à sua própria existência, os israelenses tradicionalmente abriram mão de certos direitos que são dados como certos em democracias liberais. Revistas e detectores de metais na entrada de lugares públicos são considerados uma medida efetiva contra atentados terroristas, que vitimaram centenas de cidadãos durante os últimos setenta anos. Uma censura prévia existe em todos os meios de comunicação, ainda que basicamente para evitar que se revelem detalhes sensíveis de operações militares e de segurança. Os arquivos do Estado, públicos na vasta maioria do Ocidente, são públicos em Israel, porém frequentemente o governo vai contra sua própria Lei de Arquivos (1955) para proteger informações consideradas sensíveis. Mais de uma vez, foi revogado o acesso à documentos já liberados.
A faceta mais conhecida de tais medidas é o Aeroporto Ben Gurion. As medidas de segurança são internacionalmente reconhecidas, resultando em poucos incidentes terroristas até hoje. Uma rede de seguranças, uniformizados e à paisana, soldados, policiais e patrulha de fronteira controla quem entra e sai do país. Quem já visitou Israel, sabe como funciona. Perguntas as vezes que fazem pouco sentido, outras mais óbvias como se você gosta de Israel ou por qual motivo está visitando. Caso algo pareça fora do comum, uma visita à salinha em separado que pode durar um minuto ou algumas horas.
Tal dinâmica é considerada normal. Incômoda para muitos, mas legítima como maneira de proteger vidas de cidadãos em um país que convive com constantes ameaças terroristas. Porém, interrogatórios e proibicções de entrada recentes à ativistas e personalidades do mundo judaico americano geraram uma crise no sistema. Neste fim de semana, Peter Beinart, um famoso jornalista e autor judeu-americano, foi questionado ao visitar Israel para um bat-mitzvah. Seu livro “The Crisis of Zionism” ficou conhecido como uma obra fundamental para entender o dilema dos sionistas alinhados ao campo progressista nos EUA: a ideia de defender Israel por razões ideológicas e afetivas, ao mesmo tempo indo contra as tendências percebidas como nefastas para a democracia israelense. Para Beinart, a ocupação dos Territórios, também conhecidos como Cisjordânia ou Judeia e Samaria, estaria corrompendo a atmosfera política israelense.
Beinart escreve que as medidas tomadas para garantir a segurança de Israel – a presença militar nos territórios, barreiras, detenções, etc, – eventualmente significariam a erosão do liberalismo israelense. Ao negar a liberdade política aos palestinos, Israel estaria implodindo o que foi criado em 1948. Para combater tais medidas, Beinart propõe um boicote aos assentamentos, o que ele chama de “BDS sionista”, o que eventualmente forçaria alguma forma de compromisso político com a solução de dois Estados.
Ao chegar em Israel, o autor foi questionado sobre suas visões políticas e perguntado se iria se juntar à algum protesto político, em uma sessão que durou uma hora.
Outros casos foram registrados. Meyer Koplow, professor da Brandeis University e filantropo conhecido por seu engajamento pró-Israel, foi questionado por causa de um panfleto considerado pró-palestino encontrado em sua bagagem. Ariel Gold, militante da organização Code Pink, foi barrada ao tentar entrar no país para estudar na Universidade Hebraica de Jerusalém. Simone Zimmerman, ex-assessora do senador americano Bernie Sanders e fundadora do movimento IfNotNow – que protesta contra as ações israelenses na Cisjordânia -, foi questionada sobre suas opiniões políticas ao cruzar a fronteira do Egito com Israel. Legalmente, o serviço de fronteira está respaldado por uma lei que trata o boicote de Israel como ofensa criminal, passível de punição pela justiça israelense. A entrada em um país não é um direito. Liberdade de movimento para não-cidadãos que querem entrar em território estrangeiro é condicionada à vistos, protocolos e autorizações. As questões morais e éticas mais profundas é que são problemáticas.
Israel é um país criado para assegurar uma pátria livre e uma sociedade livre para judeus – e suas minorias. A ideia de que cidadãos livres podem ser questionados por suas visões políticas não combina com a suposta natureza democrática do Estado. Quando Ben-Gurion foi questionado em relação ao excesso da influência ortodoxa na vida pública de Israel, respondeu ao seu interlocutor que ouvia sua opinião como judeu e portanto, voz legítima para se engajar em uma conversa crítica sobre o país. O judaísmo do cidadão americano que escrevia a carta o colocava como parte legítima do diálogo, acima de passaportes. Obviamente, por ainda ser um não-cidadão, não poderia ter influência direta na política israelense. Porém, subentende-se que o destino de Israel estaria intrinsecamente ligado à vida da diáspora judaica.
Alega-se que os indivíduos barrados, ao apoiarem iniciativas consideradas como subversão política, estão indo contra o “consenso nacional” israelense e são frequentemente chamados de traidores (um termo que se tornou perigosamente comum na sociedade israelense). Um exemplo foi a recusa da atriz Natalie Portman em aparecer ao lado de Benjamin Netanyahu em uma cerimônia de premiação em Israel. Um dos membros do Knesset, Oren Hazan, disse que ela deveria ter sua cidadania retirada por tal ato. Ora, sequer um indivíduo que de fato cometeu crime de traição e espionagem contra Israel como Mordechai Vanunu, ou o assassino de Itzhak Rabin, Igal Amir, tiveram suas cidadanias retiradas. A ideia de “traição” e “lealdade” como garantidores de direitos é algo digno de regimes autoritários, e que significariam a troca de uma democracia para um Estado policial.
A ideia é uma ladeira escorregadia. Em qualquer democracia, discordar ou repudiar por completo os governantes eleitos nada mais é do que direito garantido. Ser frontalmente contra a liderança de Benjamin Netanyahu é uma questão de confissão pessoal e individual, e isto não deve ser uma questão para ser auferida por guardas de fronteira e autoridades de imigração. Milton Friedman, famoso economista da Escola de Chicago, dizia que “nada é mais permanente do que um programa temporário de governo”. Oras, é difícil imaginar que o estado de coisas presente se reverterá amanhã de manhã com uma canetada. Além de que, os governantes israelenses são indivíduos, falíveis e com os mesmos problemas que tantos outros possuem.
Se ideias de “subversão” passarem a englobar qualquer ideia que peça por mudanças em Israel tais quais a reforma da autoridade do Rabinato, a separação de sinagoga e Estado de maneira mais clara, o reconhecimento oficial de correntes não-ortodoxas, mudanças na Lei de Israel como Estado-Nação do Povo Judeu ou algo que esteja fora do estipulado como “consenso nacional” – até mesmo a adesão aos princípios dos Acordos de Oslo -, as categorias de “traição” somente vão se expandir. Opiniões políticas e protestos pacíficos, mesmo que incômodos, não podem ser alvos de escrutínios do governo. Obviamente, temos casos e casos. Apoio explícito à grupos que tem como objetivo a destruição de Israel não cabe dentro de categorias de livre-expressão, assim como colaboração material com os mesmos.
A situação é portanto, delicada. Alguns querem o desmantelamento das medidas de segurança por serem discriminatórias. De fato, existe sim algum grau de discriminação e isto não é nada além de domínio público: não-judeus, árabes, muçulmanos, são categorias que suscitam algum grau de suspeição. Mesmo os cidadãos árabes de Israel – com carteira de identidade e passaporte azuis – são submetidos à questionamentos mais longos do que cidadãos judeus de Israel. Outros parâmetros são rotineiramente adicionados: se o passageiro viaja sozinho, idade, destino, vistos passados no passaporte, etc [1].
Quando o sistema se fecha contra visitantes devido a suas inclinações ideológicas, o que era moralmente questionável se torna ainda mais frágil. O livre trânsito de indivíduos extremistas da direita, que gostariam de ver o fim do governo e um Estado puramente religioso aparentemente não figurou em qualquer investigação até o momento – mesmo sendo uma forma de subversão política e contra o “consenso nacional”. O escritor Moriel Rothman, declaradamente de esquerda, Moriel Rothman foi interrogado sobre suas posições políticas e o agente informou que a conversa deveria ser considerada um aviso.
O problema é mais profundo do que questões administrativas. Existem setores na sociedade e no governo israelense que acreditam em somente uma maneira de pensar Israel. Críticas são vistas como traição e a resposta é sempre simples: os incomodados que se mudem. Na discussão sobre a refomulação do canal público do governo (Kan, canal 11 anteriormente IBPC), a ministra da Cultura e Esporte, Miri Regev, abertamente questionou a validade de ter um canal cujas notícias não são controladas pelo governo. Oras, a validade é não ser uma reedição da União Soviética. O ministro do Interior, Aryeh Deri, pediu o desmantelamento do canal após uma série de reportagens sobre seu passado corrupto (preso por receber 155 mil dólares de propina quando era ministro do Interior nos anos 1990).
Tais setores sabem que os traumas da população israelense durante as intifadas acabaram por criar um eleitorado que foca em questões de segurança e economia, deixando de lado as complicações do debate político. Recentemente, setores conservadores tem encampado a ideia de que o componente judaico do Estado deve ser reforçado pois os avanços da esquerda operam em sentido contrário: a redução da religião no espaço público, posições da Suprema Corte contra a expansão israelense nos territórios, a favor de quebrar o monopólio ortodoxo em casamentos e divórcios, etc.
A cisão entre Israel e a diáspora judaica neste sentido é clara. Nem todos os judeus da Diáspora se sentem confortáveis ao ver este quadro, ou se sentem contemplados com a ideia de serem apenas espectadores passivos. Muitos acreditam em ativismo político para mudar o cenário. Nos EUA, a ideia de tikkun olam, consertar o mundo, permeia setores progressistas do judaísmo e, em Israel, muitos vêem isto como resultado de perversão da religião. A ideia de reformar o arranjo do Muro das Lamentações para a inclusão de um setor igualitário foi denunciada por setores religiosos como “infiltração estrangeira”, assim como iniciativas à esquerda como o New Israel Fund – uma ONG que milita por direitos humanos e igualdade para as minorias. Basicamente todas as grandes manifestações recentes foram acusadas de serem financiadas por tal ONG ou por dinheiro “estrangeiro”. A ideia de conspiração estrangeira acaba por cercear o debate político e deslegitimar opiniões contrárias.
Não é como se não houvesse algum fundo de verdade em algumas das críticas. Algumas das organizações tem objetivos que se posicionam fora do espectro sionista. Tais objetivos não são monopólio de organizações de esquerda. A “Jewish Defense League” é uma organização de direita cuja ramificação israelense, o partido Kach foi banido por ser abertamente racista e pregar violência contra árabes e minorias. Casos como este são legítimos para se usar a lei contra discursos de ódio e incitação. Porém, banir, suprimir e cercear críticos é pedir que a emenda saia pior do que o soneto.
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Ao se aproximarem de táticas de intimidação, cria-se uma atmosfera de coerção difusa. Sem exageros, é claro. A polícia não vai prender estudantes lendo Karl Marx na biblioteca, não vai prender deputados de esquerda ou exilar ativistas. Tal sensacionalismo não é necessário. Porém a desagradável sensação da restrição do espaço público, da deslegitimação de ideias que não se conformem a certos ditames e por fim, a equalização de uma vertente política com “traição nacional” obviamente resultam em uma erosão na confiança das instituições democráticas de Israel e em sua missão história de acolher as diásporas judaicas.
Notas:
[1] Para um artigo no tema: Ethnic Profiling in Airport Screening – Lessons from Israel (1968-2010): http://portal.idc.ac.il/FacultyPublication.Publication?PublicationID=1976&FacultyUserName=b2xpYXY=
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