Às margens do Mar Mediterrâneo, as lindas praias da Faixa de Gaza poderiam receber turistas do mundo todo como Riviera Francesa do Oriente Médio. Mas a realidade não poderia ser mais inversa. Na Gaza de 2018, poucos entram e saem. Turistas em busca de um balneário? Nem pensar.
Por que Gaza não é a “Cingapura” do Oriente Médio? Por que se tornou sinônimo de violência e conflito?
Para entender a Faixa de Gaza, é preciso compreender que se trata de um pedaço de terra mínimo localizado em um ponto estratégico. Tem uma área de apenas 365 km², equivalente a um quarto da cidade de São Paulo, que fica na encruzilhada entre África, Europa e Ásia. Por lá, marcharam um sem número de imperadores com seus povos e generais com seus exércitos nos últimos 5 mil anos.
No território, com apenas 41 km de costa e de 6 a 12 km de largura, vivem hoje entre 1,8 milhão e 2 milhões de palestinos (o número exato não é consenso). Segundo o site americano Demographia, a Cidade de Gaza (maior centro urbano da Faixa de Gaza), é a 40ª cidade mais densamente populada do mundo (dados de 2014).
A sensação de asfixia é assinalada pelo fato de que as fronteiras de Gaza com os vizinhos Egito e Israel estão praticamente fechadas desde 2007, quando o grupo terrorista Hamas tomou o controle, à força, da região após expulsar de lá toda a cúpula da facção palestina rival, o Fatah.
HISTÓRIA DE CONQUISTAS
Mas, como Gaza chegou a esse ponto? A verdade é que o conflito israelense-palestino é um grão de areia na história milenar desse ponto de encontro entre três continentes. Os registros começam em 3300 AC, com os primeiros assentamentos humanos nessa área, chamada na época de Canaã. Desde então, Gaza passou muitas vezes pelas mãos dos egípcios. A capital era Tell al-Ajjul, no local onde hoje está a Cidade de Gaza. Gaza se tornou um ponto cobiçado nas guerras cíclicas entre Egito, Síria e Mesopotâmia. Por volta do século XII, se tornou a capital dos filisteus, um povo marítimo mediterrâneo.
Foi por volta dessa época que passou a estrelar nos relatos bíblicos. Os filisteus se consolidaram como os principais rivais dos israelitas. Gaza é mencionada na Torá (a Bíblia judaica) diversas vezes. Foi lá que Sansão foi traído por Dalila. A Torá também conta como os israelitas tomaram Gaza na época do Rei Davi, se tornando parte do Reino de Israel.
Nos séculos seguintes, passou pelas mãos de assírios, babilônios, macedônios, gregos, selêucidas e egípcios. Em 96 AC, foi a vez dos hashmoneus (dinastia judaica conhecida também como macabeus) tomarem as rédeas, até a chegada dos romanos. Durante essa, Gaza viveu um de seus períodos mais prósperos.
O NOME “PALESTINA”
Quando o Império Romano decidiu punir os judeus depois de duas rebeliões judaicas, em 66 (que levou à destruição do Segundo Templo Judaico de Jerusalém, quatro anos depois), e entre 132-135 (com Bar Kochba), Gaza foi a inspiração. Para irritar os judeus, Roma renomeou a região da Judeia e atual Síria como Síria-Palestina, em homenagem aos rivais filisteus (ou “palestinos”, como eles diziam). O nome “Palestina” pegou.
A conversão de Gaza ao cristianismo aconteceu aos poucos até os séculos IV e V. Mas, em 637, a população adotou o islamismo com a chegada dos muçulmanos. Com o passar dos séculos, viveu épocas de prosperidade e de declínio sob domínio dos cruzados, dos mongóis e dos otomanos. Em 1799, Gaza foi ocupada brevemente por Napoleão Bonaparte, que chamou a cidade de seu “Porta para a Ásia”.
No século XIX, Gaza fortaleceu os laços com o Egito depois de ser ocupada pelo país vizinho até 1840, quando foi novamente retomada pelos otomanos.
PRIMÓRDIOS DO CONFLITO
Pode-se dizer que o atual contexto de Gaza começa no início do século passado, quando, em meio a perseguições na Europa e motivados pelo movimento sionista, centenas de milhares de judeus europeus começaram a imigrar para a Palestina. Em Gaza, entre a maioria muçulmana, havia uma minoria de judeus e de cristãos.
Em 1917, os britânicos colocaram um ponto final no domínio otomano. Foi um momento de renascimento, com aumento populacional e modernização. Com o incremento da imigração judaica para a Palestina, no entanto, os conflitos em judeus e árabes se proliferaram. O bairro judaico de Gaza foi destruído em 1929 e as 50 famílias judias da cidade fugiram.
Em 1936, novos confrontos entre judeus e árabes eclodiram em meio a um caldeirão de tensões que já começava a borbulhar. Antes mesmo da Segunda Guerra Mundial, os ingleses já consideravam entregar os destinos da Palestina aos líderes locais. Em 1947, a recém-criada ONU tentou justamente isso ao aprovar um plano de Partilha da Palestina entre árabes e judeus. Mas, se os judeus, sob o comando de David Ben-Gurion, aceitaram o plano, a liderança árabe o rejeitou.
Em 1948, Ben-Gurion declarou unilateralmente a criação do Estado de Israel e, com a guerra que se sucedeu, a Cidade de Gaza e seus arredores passaram ao controle do Egito. Cerca de 250 mil palestinos se deslocaram para lá durante a guerra, fugidos ou expulsos.
Em fevereiro de 1949, Egito e Israel riscaram as fronteiras da Faixa de Gaza, que ficou sob controle egípcio por quase 20 anos.
RELAÇÃO COM O EGITO
Segundo o ativista de direitos-humanos Muhammad Shehada, os egípcios sempre trataram os palestinos de Gaza com desdém. “Todos os regimes militares egípcios isolaram Gaza, culparam os moradores pelos problemas do Cairo e semearam o medo, a humilhação e a miséria entre a população palestina do enclave”.
Na guerra contra Israel, em 1948, o Egito recusou-se a anexar a Faixa de Gaza, mas sim a cercou, instalou uma força de ocupação composta de inteligência militar e nomeou um governador militar.
“Gaza se tornou a última prioridade do Egito, que se recusou a assumir qualquer responsabilidade sobre sua então população de 1 milhão de pessoas. A posição do regime egípcio era de nunca aceitar o ônus sobre Gaza, mas sim de responsabilizar Israel como a força de ocupação, posição que mantém até agora”, diz Shehada. Além disso, a campanha de perseguição doméstica de Gamal Abdel Nasser contra a Irmandade Muçulmana, facção islâmica radical criada em 1928, levou a prisões arbitrárias em larga escala de ativistas, sindicalistas e intelectuais palestinos na Faixa de Gaza – onde mantinha muita influência.
A situação mudou brevemente em 2011, depois da Primavera Árabe no Egito, que derrubou o presidente Hosni Mubarak. Com a vitória eleitoral de Mohamed Morsi (2012-2013), ligado à Irmandade Muçulmana, as fronteiras com Gaza foram reabertas, a população claustrofóbica deixou de ser aprisionada, a economia prosperou.
Mas essa época de ouro foi de curta duração. Com a eleição do general Abdel Fattah el-Sisi, a tradicional visão de Gaza como berço de terroristas ligados à Irmandade Muçulmana voltou com força total. Sisi isolou Gaza do mundo novamente, a culpando pelas repetidas crises do Egito.
“Agora, é quase uma ofensa punível ser um gazano no Egito”, diz Muhammad Shehada. “A população do Egito, sujeita à propaganda interminável do Estado, teme o contato com os moradores de Gaza como se eles tivessem a praga, ou um defeito moral contagioso”.
SOB CONTROLE DE ISRAEL
Com a vitória na Guerra dos Seis Dias, em 1967, a Faixa de Gaza foi ocupada por Israel, que passou a construir pequenas comunidades na região (as chamadas “colônias”). A administração civil de Gaza foi mantida, mas houve, desde o começo, reclamações quanto à intervenção de Israel em assuntos locais. Apesar do crescimento econômico anual de 9%, em média, entre 1967 e 1982, a repulsa a Israel cresceu ano a ano.
Os primeiros casos de luta armada contra Israel começaram imediatamente depois de 1967. Na Primeira Intifada (1987), Gaza se consolidou como um centro de resistência/terrorismo contra Israel. Foi nesse ano que o Hamas surgiu, uma organização islamista sunita inspirada na Irmandade Muçulmana do Egito que prega a destruição de Israel e a instalação da Lei Islâmica em todo mundo. O Hamas é oficialmente registrado como organização terrorista pela União Europeia, pelos Estados Unidos, por Israel e por outros países.
O Hamas se tornou popular especialmente por causa de seu braço assistencialista, mas é o infame ramo paramilitar, as brigadas Izz ad-Din al-Qassam, que torna o grupo temido. Paradoxalmente, muitos israelenses se lembram dessa época – dos anos 70 e 80 – como uma espécie de “época de ouro”, quando podiam ir fazer compras em Gaza, ir às praias e interagir com os moradores da região. Milhares de gazanos trabalhavam em Israel, principalmente na construção civil. Havia pólos industriais e comerciais conjuntos entre empresários israelenses e palestinos.
Em 1993, com os Acordos de Oslo, a Faixa de Gaza se tornou parte formal da Autoridade Palestina, um órgão de autogoverno que deveria ser temporário, mas que existe até hoje, governado pelo partido Fatah. Junto com Cisjordânia e Jerusalém Oriental, Gaza faz parte do sonho palestino de formar um Estado nacional independente reconhecido por todo o mundo, incluindo Israel.
Mas se os Acordos de Oslo pareciam promissores há 25 anos, eles se depararam com obstáculos que parecem intransponíveis até hoje, como o fortalecimento de grupo islâmicos que optam pela luta armada contra Israel através de ataques terroristas – Hamas e Jihad Islâmica – e a oposição política dentro de Israel à retirada de colônias na Cisjordânia e à divisão de Jerusalém.
Desde 2001, grupos extremistas em Gaza começaram a atacar Israel com foguetes do tipo Qassam, morteiros e mísseis russos ou iranianos. Foram mais de 17 mil projéteis até hoje, que mataram 44 pessoas e feriram mais de duas mil.
Em 2005, Israel se retirou totalmente de Gaza: 21 colônias com 8 mil pessoas foram deslocadas para dentro de Israel. Críticos afirmam que o então primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, errou em se retirar unilateralmente, sem firmar acordo algum com a Autoridade Palestina. O resultado seria um vácuo de poder explorado pelo Hamas.
Em 2006, o Hamas venceu as eleições parlamentares palestinas. Um ano depois, em 2007, o grupo tomou o poder à força em Gaza depois de uma confronto com os rivais do Fatah (legítimos governantes através do presidente eleito em 2005, Mahmoud Abbas). No conflito entre as duas facções, o Hamas saiu-se vencedor de uma guerra civil entre janeiro de 2006 e maio de 2007 que deixou 600 mortos.
Com a subida ao poder do Hamas, a antes efervescente fronteira entre Gaza e o resto do mundo se tornou uma barreira. Dos seis postos de fronteira entre Israel e a Faixa de Gaza, só dois funcionam – parcialmente – hoje: o de Kerem Shalom (para mercadorias) e o de Erez (para pessoas). E o maior posto de fonteira, o de Rafah, com o Egito, fica praticamente fechado desde o começo do governo Sisi.
Apesar da retirada israelense, as Nações Unidas, organizações internacionais de direitos humanos e a maioria dos governos e comentaristas legais consideram o território ainda ocupado por Israel, apoiado por restrições adicionais impostas a Gaza pelo Egito. Israel controla o espaço aéreo e marítimo. Gaza depende de Israel para a água, eletricidade, telecomunicações e outros serviços públicos.
GRANDES CONFLITOS
De 2009 até hoje, o Hamas e Israel entraram em conflito três vezes. O motivo é sempre o mesmo: os ataques aéreos de Gaza contra Israel, que paralisam todo o sul do país e levam centenas de milhares de pessoas a se abrigarem em bunkers. Por causa desses ataques, todas as comunidades em volta de Gaza dispõem de abrigos antiaéreos e sirenes. Os moradores têm, em média, 15 segundos para procurar refúgio quando as sirenes tocam.
O primeiro conflito (27 de dezembro de 2008 a 19 de janeiro de 2009) é chamado em Israel de Operação “Chumbo derretido”. O Hamas chegou a atacar cidades como Beer Sheva e Ashdod com mísseis de médio alcance. Israel atacou, em resposta, locais de treinamento e depósitos de armas do Hamas. Houve ataques israelenses também a mesquitas e escolas de onde Israel alega que militantes do Hamas lançaram foguetes e mísseis usando civis como escudos humanos. O saldo de mortos é de cerca de 1,2 mil palestinos e 13 israelenses.
O frágil cessar-fogo durou pouco e a situação de violência escalou novamente até o segundo conflito, em outubro de 2012, chamado de “Operação Pilar Defensivo”, com cerca de 150 mortos palestinos e 22 israelenses. Pela primeira vez, Tel Aviv foi alvo.
Mas o maior confronto aconteceu em 2014, a Operação “Margem Protetora”, que começou com o sequestro e morte de três adolescentes israelenses por membros do Hamas na Cisjordânia. No conflito, cerca de 2,2 mil palestinos e 72 israelenses morreram (incluindo om trabalhador estrangeiro tailandês). Os grupos palestinos lançaram 4,5 mil projéteis contra Israel, sendo que 735 foram interceptados no ar pelo sistema antiaéreo israelense. Domo de Ferro. Israel, por sua vez, atacou 5,2 mil alvos em Gaza, a maioria deles vinculados ao Hamas. Mas os ataques também destruíram 10 mil casas e danificaram 90 mil.
Pela primeira vez os palestinos fizeram uso de sofisticados túneis subterrâneos clandestinos, alguns com quilômetros de distância. Esses túneis começam em Gaza e terminam além de fronteira, dentro de Israel. Militantes palestinos podem se infiltrar em vilarejos israelenses para cometer sequestros e ataques terroristas (foi através de um desses túneis que o Hamas sequestrou o soldado israelense Gilad Shalit, em 2006).
SITUAÇÃO ATUAL
Atualmente, Gaza vive uma situação humanitária sem precedentes. Só há energia elétrica poucas horas por dia. Falta água potável e equipamentos médicos. O desemprego chega a 45% (62% entre os jovens).
Israel alega que isso acontece porque o Hamas usa bilhões de dólares em ajuda internacional para esforços de guerra contra Israel ao invés de utilizar em melhorias para a população civil, que controla com mão de ferro, reprimindo opositores. Os palestinos alegam que isso é resultado direto do bloqueio das fronteiras por Israel e Egito. O resultado é uma população civil frustrada e asfixiada.
A frustração levou à realização, em março deste ano (2018), de protestos na fronteira com Israel organizados, a princípio, por ativistas sociais, mas logo adotados pelo Hamas. No dia 30 de março, 40 mil palestinos marcharam em direção à cerca que marca a fronteira com Israel, na chamada “Marcha do Retorno”. Soldados israelenses impediram a infiltração em massa. Mais de 60 palestinos morreram.
Segundo Yohanan Tzoreff, da INSS, desde a Primeira Intifada (1987-1990), multidões de palestinos não participaram em tamanha manifestação. “A severa situação em Gaza, juntamente com os sentimentos generalizados de inferioridade e discriminação, pode acender um fogo quando for a hora certa e houver motivos imediatos. A realidade de hoje é mais severa do que no passado e a divisão entre as facções enfraqueceu os palestinos e impediu qualquer ação efetiva. No entanto, os anúncios do presidente Trump sobre Jerusalém e a realocação da embaixada dos EUA para Jerusalém forneceram um denominador comum para unir as fontes do poder palestino”, diz Tzoreff.
FUTURO
O futuro de Gaza depende das posições do Hamas e do posicionamento de Israel diante do grupo terrorista. Os pessimistas acham que Gaza poderá continuar a ser usada como base paramilitar contra Israel pelo Irã, por exemplo. Ou que Israel poderá decidir reocupar militarmente a região. Os poucos otimistas acham que é possível negociar uma “hudna” (trégua) entre Israel e Hamas, com o Egito funcionando como moderador em eventuais e pontuais confrontos.
Mas a maioria acredita que, enquanto o Hamas estiver no poder, nada vai realmente mudar.“Iniciativas, soluções pacíficas e conferências internacionais estão em contradição com os princípios do Movimento de Resistência Islâmica. A jihad se torna o dever individual de todo muçulmano em face da usurpação da Palestina pelos judeus. Essas crenças são o pano de fundo para a violência. Enquanto o Hamas governa Gaza, soluções completas para os problemas de Gaza devem ser buscadas, mas parece muito improvável que elas sejam encontradas”, diz Amr Hamzawy, estudioso do Instituto Carnegie Endowment for International Peace.