Daniela Kresch
Especial para o IBI
TEL AVIV – Há 70 anos, os britânicos lavavam as mãos. No dia 15 de maio de 1948, eles voltavam para a Europa, deixando que os habitantes da Palestina, uma região no Oriente Médio complicada e disputada há milênios, se entendessem sozinhos. O fim do chamado Mandato Britânico sobre a Palestina (1920-1948) levou os 600 mil judeus-palestinos pré-Israel a declararem sua independência, ou melhor: a criação de uma nova entidade, o Estado de Israel (cuja data oficial é celebrada pelo calendário judaico, que este ano caiu em 18 de abril).
Mas esse mesmo fim do Mandato Britânico significou outra coisa para os 1,2 milhão de habitantes locais, os árabes-palestinos. Para eles, o 15 de maio marcou a “Nakba”, a catástrofe, em árabe. Seis meses antes, em 29 de novembro de 1947, as Nações Unidas haviam decidido partilhar a Palestina entre os judeus e árabes que moravam por lá. Judeus aceitaram a divisão, árabes não. A criação de Israel, então, foi uma alegria para uns e um cataclisma para outros.
Atualmente, 76% dos árabes-israelenses (pouco mais de 20% da população de Israel), ignoram o Dia da Independência do país em que vivem, preferindo participar de manifestações em lembrança da Nakba. Os palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza também consideram o dia como uma data trágica.
Estima-se que 700 mil árabes tenham fugido ou sido expulsos de suas aldeias durante a Guerra da Independência, que começou no dia seguinte à proclamação de criação de Israel. Muitos foram encorajados por líderes árabes a abandonar suas casas, prometendo que retornariam assim que os judeus fossem derrotados. Outros foram expulsos pelo recém-criado Exército de Defesa de Israel.
Parte deles foi para a Cisjordânia e para a Faixa de Gaza e hoje lutam por um Estado palestino independente. Outros foram para o Líbano, Síria e Jordânia, onde seus descendentes são até hoje tratados como refugiados, sem direito à cidadania nos países onde nasceram, e também sonham em fazer parte desse Estado palestino.
A narrativa palestina da Nakba se baseia na ideia de que os judeus começaram a chegar na região da Palestina no final do século XIX para conquistar as terras árabes através do mesmo modelo do colonialismo francês e britânico da época. Não há quase menção dos 4 mil anos de História judaica na região – de Abraão aos reis Davi e Salomão, passando pelos Grandes Templos, os macabeus, os sábios de Safed e etc. Dessa forma, a presença judaica é geralmente encarada como uma invasão de terras árabes por motivações territoriais e econômicas, não culturais ou religiosas.
A Nakba começou a ser lembrada já em 1949, logo depois do fim da Guerra da Independência, da qual Israel saiu vitorioso. Era uma data de luto e lembrança dos mortos e deslocados na guerra. O termo Nakba nem estava ainda estabelecido. Alguns consideravam chamar a data de “karitha” (desastre, em árabe) ou “ma’saa” (tragédia). O termo Nakba, no entanto, saiu-se vencedor.
Aos poucos, a data passou a ser marcada com manifestações com cartazes e faixas em aldeias árabe-israelenses e palestinas. Muitos participantes levavam as chaves das casas onde seus pais e avós moravam, em cidades hoje israelenses como Haifa, Ramle e Ashkelon. A chave, aliás, é o símbolo da ideia de “retorno” às terras que os árabes acreditam terem sido roubadas por judeus.
Em 1998, a Nakba se tornou uma data oficial da recém-criada Autoridade Nacional Palestina, na época comandada por Yasser Arafat. E passou a conter protestos e marchas fora das aldeias árabes, muitas vezes com confrontos entre manifestantes e forças de segurança de Israel. No próprio ano de 1998, por exemplo, quatro palestinos morreram num desses confrontos. Em 2001, morreram quatro palestinos e um israelense.
Em 2011, os confrontos aumentaram de ritmo quando milhares de refugiados palestinos do Líbano e da Síria, bem como da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, tentaram cruzar a fronteira com Israel em diversos pontos ao mesmo tempo. Quinze palestinos foram mortos e centenas feridos. Dezenas de soldados israelenses também foram feridos.
Vinte anos depois de Arafat ter transformado a data em um feriado oficial, as celebrações da Nakba chegam ao auge neste 2018, com a chamada “Marcha do Retorno”, uma série de protestos de palestinos da Faixa de Gaza ao longo da fronteira com Israel com clímax em 15 de maio e com participação também de palestinos de Jerusalém Oriental e da Cisjordânia. Em Gaza, o objetivo declarado do grupo terrorista Hamas é incitar moradores a invadir Israel cruzando em massa cerca que marca a fronteira.
Assim como os eventos foram aumentando em intensidade com o tempo, a atenção dos israelenses à data foi ganhando força. Se nas primeiras décadas do país, poucos tinham ouvido falar de Nakba, hoje não há israelense algum que ignore o termo. Desde a Segunda Intifada palestina (2000-2004), há uma batalha interna em Israel sobre como lidar com tudo isso. Para alguns, o país deve admitir a existência da data e tentar entender como ela influencia na identidade árabe-israelense/palestina. Para outros, Israel deve proibir que a Nakba se estabeleça como uma narrativa alternativa.
Em 2009, por exemplo, o então ministro da Educação, Guideon Saar, proibiu o uso da palavra Nakba em livros escolares destinados a escolas árabe-israelenses. Em 2011, o Knesset (Parlamento) aprovou, por 37 votos a 25, uma mudança no orçamento nacional que dá ao ministro das Finanças o poder de reduzir o financiamento a qualquer ONG que celebre a Nakba ao invés do Dia da Independência de Israel.
É por isso que, desde 2012, grupos de estudantes palestinos da Universidade de Tel Aviv realizam eventos sobre a Nakba pagando por sua própria segurança para evitar que a universidade viole as restrições estabelecidas pela Lei da Nakba.
Em Haifa, a prefeitura retirou o financiamento municipal de um festival de cinema sobre a Nakba, que acontece há cinco anos, da ONG Zochrot. Dois cinemas também decidiram não passar os filmes do festival. Diante da polêmica, a ONG recebeu tantas doações que acabou por agradecer a atenção pública:
“Podemos definitivamente dizer que há um espaço maior para falar sobre o Nakba em Israel, mas ainda temos um longo caminho a percorrer. Quanto mais tentativas legislativas de limitar o espaço para discussão, maior o interesse público se torna”, disse a diretora da ONG, Liat Rosemberg.
Para alguns palestinos, a Nakba não foi um evento pontual. Começou muito antes de 1948 e continua até hoje. Eis o que escreveu Joseph Massad no site “The Electronic Intifada” em 13 de maio: “Se as características mais notáveis da Nakba são o roubo de terras palestinas, a expulsão dos palestinos delas (…) e o controle e a opressão sistemáticos, então eu argumento que seria mais do que impreciso considerar o Nakba como um evento isolado que se refere à guerra de 1948 e suas consequências imediatas. Em vez disso, deveria ser estudado como um processo que durou os últimos 140 anos, começando com a chegada dos primeiros conquistadores sionistas para colonizar a terra no início da década de 1880. ”
Já os que se opõem à transformação da Nakba em uma data aceita socialmente afirmam que ela cria uma descrição leviana dos eventos que deram origem ao sionismo e ao Estado de Israel. Diferentemente da narrativa da Nakba, a imigrações judaica moderna para a Palestina na segunda metade do século XIX não teria tido como motivação uma teoria conspiratória colonialista e sim a autodeterminação do Povo Judeu, perseguido há milênios, principalmente na Europa.
A exigência palestina por um “direito de retorno para refugiados” seria, na verdade, uma convocação à destruição do Estado de Israel. Isso porque a ideia de que milhões de refugiados palestinos retornem para Israel, não para um futuro Estado palestino, transformaria os judeus em minoria em seu próprio país.
Fora isso, não se pode deixar de mencionar a troca de populações que aconteceu como resultado do conflito de 1948. Assim como cerca de 700 mil árabes deixaram suas casas no território do Mandato Britânico, cerca de 800 mil judeus foram expulsos de seus lares na maioria dos países árabes – do Egito ao Iraque, da Tunísia ao Iêmen. Enquanto os refugiados judeus há muito deixaram para trás esse status ao serem integrados à sociedade israelense, os árabes-palestinos são mantidos em campos de refugiados com o objetivo de perpetuar o conflito com Israel.
Como tudo em Israel, a Nakba tem dois lados. Mas é uma mesma moeda. Certamente, ao manter o desprezo incessantemente pelo Estado de Israel, a narrativa da Nakba priva os palestinos da visão e da mentalidade necessárias para entender os israelenses e serem capaz de conviver bem com eles.
Da mesma forma, a insistência de alguns em Israel em ignorar o sentimento que permeia a sociedade árabe e exigir que celebrem uma data que, por gerações, é considerada uma “catástrofe”, também não ajuda a levar a uma reconciliação entre os dois povos que dividem a mesma terra.