“Nunca foi tão importante estudar a Shoá”

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Como ensinar sobre o Holocausto nos dias atuais? É correto evocar outras memórias de atrocidades que não tem relação direta com o Holocausto durante uma visita a Auschwitz? Como passar a dimensão da atrocidade sem banalizar ou particularizar a ponto de causar, no lugar de empatia e sensibilidade, a indiferença? Avraham (Tito) Milgram, do prestigiado Museu do Holocausto de Israel- o Yad Vashem – se debruça de maneira profunda sobre cada uma dessas questões, a convite do IBI.

Como se deve ensinar o Holocausto hoje?

O Holocausto é um dos raros capítulos da história humana com ingredientes úteis e significativos para uma educação humanista, cívica, liberal e democrática – para judeus e não judeus. E provavelmente é uma das principais razões pelas quais, no mundo todo, se invertem tantas energias em currículos escolares, em visitas a museus e a ex-campos nazistas bem como em programas como a Marcha pela Vida, por exemplo. Nesta plêiade de ingredientes vamos encontrar de forma exponencial os perigos e consequências da perseguição política; da ditadura totalitária, do culto e subserviência à uma personalidade e partido. Acima de tudo vamos encontrar o antissemitismo fundamentalista de caráter genocidal. Aquele conjunto de idéias que motivaram os nazistas e seus cúmplices a criar um mundo sem judeus. Há  certamente outros tópicos que dizem respeito à civilização européia, a cultura ocidental e aos próprios judeus. De todos modos, são temas que devem figurar em qualquer currículo, marco educativo, formal ou informal, judaico ou não. Relativamente à pergunta diria a grosso modo que há três componentes indispensáveis para o ensino do Holocausto:

1) A transmissão de conhecimentos sobre fatos, eventos e processos históricos que produziram o Holocausto como parte da identidade judaica, para que o Holocausto seja um componente do nosso ser judeu como outros grandes eventos da nossa história tal como a saída do Egito etc.

2) A sensibilização, que paralelamente à dimensão cognitiva e racional mencionada acima, deve ser processada através de testemunhos, filmes, literatura, memoirs, arte, visitas in situ aos lugares onde ocorreu o Holocausto, contato sensorial mas, também reflexivo com a subjetividade da memória do Holocausto exposta em monumentos, memoriais, museus, para além de diálogos com sobreviventes, filhos de sobreviventes, e outros envolvidos com a memória do Holocausto. Esta experiência poderá enriquecer através de diálogos com jovens de outras nações cujos ascendentes viveram aquela época, e o Holocausto é parte de sua história, não como aos judeus, talvez como um fantasma que exorciza suas consciências.

3) A consciência da responsabilidade. Penso que a educação do Holocausto ficará vazia se não houver intenção de estimular o educando a transcender o aprendizado e o sensibilizado sobre o Holocausto e empenhar-se no seu mundo aqui e agora. Nalgum momento do processo  educativo significativo, o educando se questionará sobre seu modo de proceder, sobre sua responsabilidade em relação à indiferença e ao outro – desafortunado, discriminado e injustiçado. Tendo a crer que um processo educativo sério e profundo nas duas primeiras etapas criará bases ao terceiro nível, do compromisso moral, judaico na sua essência.

Qual é a história de ensino do Holocausto em Israel?
Esta pergunta exige uma longa, complexa e exaustiva resposta pois a história do ensino do Holocausto em Israel reflete processos históricos que ocorreram antes mesmo do Holocausto, tal como a forma pela qual concebiam os sionistas o Galut em geral e a tragédia do Holocausto em particular, prosseguindo pela absorção de um quarto de milhão de sobreviventes e seu encontro com os veteranos do Yshuv que vieram à Palestina Britânica antes do Holocausto, e nesta temática devemos considerar principalmente o impacto do julgamento de Adolf Eichmann em 1960- 1961 na sociedade israelense, e logo após, os efeitos da Guerra dos Seis Dias (1967) e a confraternização e normalização das relações de Israel e do Sionismo com a diáspora Judaica. Não menos importante para a memória e ensino do Holocausto foi o trauma causado pela Guerra de Yom Kipur (1973), e outros fatores externos e internos que se  seguiram ao dito acima. Cada uma destas etapas contribuiu para a inserção desta memória bem como para contemplar e rever o ensino do Holocausto vis-à-vis a realidade de Israel. Assim como a memória do Holocausto é e continua sendo dinâmica, o mesmo ocorre com o ensino do Holocausto. Ambas construções derivam de processos (políticos, sociais, culturais e ideológicos) que envolvem o Estado de Israel, o povo judeu e o que vem ocorrendo no mundo em geral. A grosso modo, é um fato que não havia currículo de ensino do Holocausto em Israel anterior ao processo Eichmann. Por mais que surpreenda, é preciso lembrar que a lei que instituiu o Yad Vashem, como autoridade oficial da memória, pesquisa e comemoração do Holocausto, ocorreu apenas em 1953, cinco anos após o estabelecimento do Estado de Israel, enquanto a lei do Dia do Holocausto muitos anos depois, em 1959, onze anos após a criação do Estado. Até então, o Holocausto era tema de grandes polêmicas públicas à exemplo do caso Kastner em 1956-1957 ou da aceitação ou não de indenizações da Alemanha ao Estado de Israel em 1952 e outras. A nível particular, a memória do Holocausto se expressava através de livros Yizkor (para comemorar comunidades destruídas), através de monumentos comunitários nos cemitérios (e nisso não há diferença com a memória que se processava na diáspora) bem como em cerimônias para oriundos das diversas comunidades. Apenas em 1983 foi instituído pelo ministério de educação a obrigatoriedade do ensino do Holocausto nos colégios, 35 anos após o final do Holocausto. Estas metamorfoses são deveras interessantes a nível de história social, de mentalidades e de políticas de memória do Holocausto como também sobre o ensino do próprio.

Quais são os erros frequentes que você observa quando se ensina sobre Holocausto?
A meu ver, erros foram cometidos (a) durante décadas após o Holocausto que no mundo todo se ignorou o Holocausto. Na França por exemplo, se ensinava apenas a resistência e os feitos heroicos da Resistência francesa, e não se mencionava a colaboração dos franceses. Lá como em outros países se pecou pela tendenciosidade. Leiam a propósito o último capítulo do livro “Pós-Guerra – História da Europa desde 1945”; de Tony Judt, excelente panorama da ignorância intencional do Holocausto a nível europeu e não só. (b) Pior talvez tenha sido a falsificação da história do Holocausto. Na Polônia durante o regime comunista a memória Judaica foi simplesmente varrida, mas o atual governo de extrema-direita projeta imagens falsas como a dos poloneses haverem sido em sua maioria absoluta Justos e os judeus passivos, dificultando sua própria salvação. Ou a idéia da equivalência na vitimização de poloneses e judeus. E há outras mensagens que também não condizem com a realidade histórica. (c) se cometem erros quando pretendem ensinar o Holocausto sem Holocausto. Ou seja, quando se relativiza a história e os fatos apresentando todos como vítimas, sem fazer distinção, contribuindo para a não compreensão no melhor dos casos. (d) Mas o inverso também ocorre com frequência no ensino judaico do Holocausto ao ignorar outras vítimas do nazismo. Os judeus em geral são extremamente sensíveis quando comparam o Holocausto judeu a outros genocídios que ocorreram na segunda Guerra, antes ou depois. Isto é um erro, diria que seria mais producente comparar para ao menos compreender as diferenças e semelhanças entre a Juden politik nazista das discriminações e perseguições contra outros. Mas não para enfatizar quem sofreu mais, absolutamente, é impossível mensurar sofrimento. Mas o esforço de comparar é válido pelo esclarecimento, compreensão da história, da centralidade dos judeus no pensamento e ação que motivou o ódio obsessivo contra os judeus. Para entender as relações entre judeus e não-judeus no âmbito europeu, estabelecidas no período anterior ao Holocausto e por outras razões. Isto exige muito estudo e conhecimento por parte dos professores para enxergar todo o quebra-cabeças mesmo que a maior parte dele diga respeito aos judeus. (e) Se comete erros no ensino do Holocausto ao desconsiderar a vida dos judeus anterior à destruição. (f) Se cometem erros no ensino do Holocausto quando educadores mistificam a vida. Por exemplo, quando projetam os judeus como se fossem imaculados, kedoshim, ou feitos de uma só matiz. Nas marchas da vida se vê tantas bandeiras de Israel que os educandos chegam a pensar que as vítimas também eram sionistas, (algumas de fato eram, mas não todas). (g) se comete erros quando o ensino está focalizado no historicismo, sem deter-nos nas angústias, fraquezas, dilemas e bravuras dos judeus que se encontraram num momento de impotência e solidão total. (h) se comete erros quando se ensina o Holocausto apenas pela perspectiva do perpetrador antissemita e nazista ignorando haverem sido as vítimas sujeitos, com vontades próprias, idiossincrasias e não objetos da história. Erra-se no ensino quando se ignora os “observadores” (bystanders em inglês).  A este propósito vejam os excelentes livros de Victor Klemperer, seus diários e outro intitulado “LTI A linguagem do terceiro Reich”. (i) Se comete erros quando se enfatiza o lado mórbido do Holocausto, ou quando se ignora assassinos de todas as espécies, não apenas alemães, também romenos, lituanos, ucranianos e outros colaboradores, inclusive franceses e holandeses. Há bons filmes poloneses como Aída a este propósito. (j) Se comete erros no ensino ao não explorar devidamente a rica literatura de testemunhos, memória, beletrista que há aos montões inclusive em português. Vejam por exemplo, o livro de ficção de Yurek Beker “Jacob o mentiroso”  de Ruth Klüger, “Paisagens da memória – autobiografia de uma sobrevivente do Holocausto” de Otto Dov Kulka, “Paisagens da metrópole da morte”;  o clássico Primo Levi, “É este o homem?” as reflexões de Jean Amery, “Além do crime e castigo”; e a instigante descrição e análise do Holocausto com inúmeras citações de vítimas, assassinos e bystanders na obra de Saul Friedländer, “Alemanha Nazista e os judeus 1933-1939, os anos de Perseguições”,  e “ Alemanha Nazista e os judeus 1939-1945, os anos de extermínio” (h) Se comete erros em relação às lições possíveis e merecedoras de serem aprendidas do Holocausto. Se conta que saíram dois de Auschwitz: um deles declarou que “isto jamais volte a ocorrer com os judeus” e o outro “que isto jamais volte a ocorrer”. A primeira perspectiva, particularista voltada apenas a si enquanto a segunda universal voltada a todos. Meu ex-professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, Yehuda Bauer, costumava dizer nas aulas que nos cuidemos para jamais voltar a ser vítimas, que não sejamos assassinos e evitemos a indiferença. Acho que esta é em resumo a Torá do ensino do Holocausto.

Recentemente uma professora brasileira fez uma homenagem, em Auschwitz, a uma política assassinada no RJ.  O que acha desse tipo de manifestação?
Vejo dois aspectos que não necessariamente se contradizem. Certamente que não é recomendável “misturar festas” e o bom senso aconselha dedicar o dia do Holocausto em geral e Auschwitz-Birkenau em particular para a memória dos judeus assassinados. Porém, pode ocorrer, e ocorre não poucas vezes, que o cenário de Auschwitz: linhas de trens, arame farpado, torres de controle, restos de barracas de prisioneiros, escombros das câmaras de gás e crematórios etc., estimule vontades de honrar outras memórias, não necessariamente a dos judeus, apesar dos judeus haverem sido a principal vítima e “ matéria prima que justificava a existência de Auschwitz”,  parafraseando Primo Levi. Considerando que o lugar inspirou a professora externar e a dar vazão ao que ela sentiu naquele momento sem intenção de transformar esta homenagem num ato público ou político, penso não haver motivos para reprovar este comportamento. É preciso considerar que Auschwitz se transformou nos últimos anos no símbolo e ícone do Holocausto (pela ONU em 2005) na cultura ocidental, e como tal estimula outras memórias também. Isto não é mal. Se o Holocausto for apenas uma questão judaica, estaremos perdidos. Quero dar um exemplo. 40-45 mil coreanos visitam anualmente o memorial de Auschwitz. A visita lá provoca na maioria deles conexões com seus traumas coletivos, os coreanos como de outros povos daquela região que todavia lembram com muita dor a ocupação japonesa que teve início em 1931 e só terminou com as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945. Nós judeus, nos vemos às voltas com o terror nazista, porém milhões de coreanos, filipinos, chineses, habitantes da Indonésia, Vietnã, Laos, Cambodja etc., convivem com a memória dos horrores infligidos a eles pelos japoneses, que aliás, até hoje não prestaram contas do que fizeram e muitos dentre eles se consideram superiores à outros povos da região. Portanto, não surpreende que visitantes asiáticos, ao visitar Auschwitz, mentalizam imagens do terror japonês e não nazista. Basta ler os livros do historiador Ian Buruma,”O ano zero”  (tb. em português) e “El precio de la culpa – como Alemania y Japón se han enfrentado a su pasado”; para perceber a amplitude dos traumas coletivos que até hoje sofrem os judeus pelo que lhes causou a Alemanha e seus cúmplices e mutatis mutandis da plêiade de povos asiáticos pelo terror causado a eles pelos japoneses. O correto é ensinar e informar que Auschwitz foi o maior centro de destruição para judeus durante o Holocausto, porém impossível (e desaconselhável) evitar a não evocação de outras memórias afins.

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