Nos últimos doze anos, meus temas de pesquisa giraram, direta ou indiretamente, em torno de Israel. Ainda na graduação, comecei a me interessar pela Guerra do Líbano de 1982, que ficou conhecida como o “Vietnã de Israel”, seja por seus controversos resultados militares, seja pelo impacto na sociedade e na política israelenses.
Iniciei meu mestrado em Ciência Política na USP com o projeto de estudar o inusitado experimento de um governo de unidade nacional em Israel iniciado em 1984, em que Shimon Peres, do partido Avodá, e Yitzhak Shamir, do Likud, dividiram o cargo de primeiro-ministro, cada um permanecendo dois anos à frente do governo. O contexto, como se sabe, era não somente de uma guerra polêmica contra a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) no Líbano, mas também de crise econômica e hiperinflação.
Várias razões me impediram de seguir meus estudos nessa área, mas meu gosto acadêmico permaneceu, sobretudo como professor universitário. Em 2011, após dois mestrados com ênfase em Brasil, resolvi reabrir minhas frentes de pesquisa sobre Israel. Naquele ano, viajei duas vezes ao país, uma delas a convite da Tel Aviv University, para me aprofundar no conflito israelo-palestino. Nos quatro anos seguintes, fui mais duas vezes a Israel e à Palestina realizar pesquisa de campo, a última delas como fellow da Brandeis University.
Nesse contexto, publiquei artigos e realizei palestras sobre diversos aspectos desse conflito, com ênfase no papel que o Brasil veio buscando desempenhar no Oriente Médio, em geral, e nas relações entre Brasil e Israel, em particular. Sou um dos poucos pesquisadores dessa área nos meios acadêmicos brasileiros e venho trabalhando para ampliá-la tanto quanto possível.
Com o perdão da digressão pessoal, sinto que essa introdução é necessária por duas razões. Em primeiro lugar, porque meu envolvimento com o tema, por mais antigo que seja, ocasionalmente esbarra na seguinte pergunta: “mas você é judeu?”.
Percebi, pela experiência, que a pergunta é duplamente capciosa. Para alguns, o fato de eu não ser judeu imediatamente me desqualifica no tratamento de qualquer tema ligado a Israel, uma vez que eu não possuiria a vivência (pessoal, familiar ou espiritual) para tratar de questões tão complexas. Para outros, um não-judeu que se especializou em temáticas israelenses só pode ser partidário de uma causa que não lhe pertence – o sionismo. Sendo assim, já teria assumido “um lado” de antemão.
Nem uma coisa, nem outra. A objetividade analítica, no limite do que é possível nas ciências humanas, deriva da coerência lógica entre premissas, conceitos e explicações. Três são os pontos de partida com que costumo trabalhar e que orientam minha pesquisa e minhas reflexões sobre temas ligados a Israel:
1) Israel possui o direito de existir. Debater a legitimidade do empreendimento sionista original, isto é, o estabelecimento de um lar nacional judaico na Palestina, pouco ou nada contribui para o fim da tragédia humanitária que se coloca na região. A superação do conflito, portanto, passa por algum tipo de normalização de relações com Israel. Ela já é aceita por Egito, Jordânia e Autoridade Palestina e deverá, aos poucos, tornar-se a realidade dos demais países árabes e do próprio Hamas em Gaza – que, na prática, já mantêm contatos informais, de comércio a assuntos de inteligência, com o governo israelense.
2) Israel mantém o povo palestino sob ocupação militar desde 1967. No começo, considerava-se o regime de exceção imposto aos palestinos, assim como a construção de assentamentos (considerados ilegais pelo direito internacional), uma questão temporária de segurança nacional. Hoje, as maiores ameaças à segurança israelense são justamente a manutenção da ocupação à Cisjordânia e o virtual bloqueio a Gaza. A expansão de colônias israelenses, sob pretexto ideológico, religioso ou econômico é, possivelmente, o maior entrave à normalização das relações não somente entre Israel e os palestinos, mas entre Israel e o mundo.
3) Israel, dentro de suas fronteiras internacionalmente reconhecidas, é uma democracia e deve preservá-la. Ainda que com suas imperfeições e idiossincrasias, a manutenção de um Estado democrático no contexto de um Oriente Médio cada vez mais turbulento é algo fundamental, tanto no plano estratégico quanto em sua dimensão simbólica. A democracia israelense, contudo, somente poderá sobreviver no longo prazo se obtiver sucesso em assimilar as minorias não-judaicas e estabelecer a paz com os palestinos, encerrando de uma vez por todas a ocupação.
Essas considerações, que defendo publicamente, coincidem amplamente com as posições históricas do Brasil a respeito do conflito israelo-palestino. Em palestras sobre o tema, sempre reafirmo o ponto: independentemente de matiz ideológica, todos os governos brasileiros nos últimos cinquenta anos defenderam uma solução de dois Estados que preservasse a natureza democrática e a segurança de Israel, bem como o bem-estar de ambas as populações. Via de regra, diferenças entre presidências são de ênfase, não de substância.
Por isso mesmo, quando um presidente manifesta o desejo brasileiro de contribuir para a solução da questão palestina, seja nas notas oficiais do Itamaraty ou em discursos nas Nações Unidas, o que está em jogo é a posição do Brasil em favor de dois Estados, assentada nas três considerações que fiz acima. A legitimidade dessa posição emana não somente dos princípios e da lógica, mas também do fato de que, ao contrário das grandes potências, o Brasil não possui interesses geopolíticos no Oriente Médio que contaminem sua leitura da situação.
Essa rápida reflexão sobre a posição brasileira me leva a um segundo ponto que motivou minha digressão inicial. Desde que iniciei minha carreira de professor e pesquisador, desenvolvi uma relação próxima e bastante profícua com diversos setores da comunidade judaica. À direita ou à esquerda, no Brasil e no mundo, existe um anseio comum que une a diáspora: o desejo pela paz em Israel.
Mesmo dentro da pluralidade, sempre houve espaço para o diálogo intracomunitário e, consequentemente, para a manifestação extramuros de posições convergentes, orientadas pelo consenso básico da busca pela paz no Oriente Médio.
Diante de algumas crises recentes, como a querela que envolveu a nomeação de Dani Dayan como embaixador israelense no Brasil, partes da diáspora cindiram-se. Isso, por um lado, tem a ver com os efeitos causados pela crescente polarização política em nosso país, que acentuou disputas ideológicas e vem inviabilizando, em larga medida, o debate construtivo sobre o presente e o futuro.
Por outro lado, isso se relaciona com a radicalização das posições em Israel, motivada, entre outras coisas, pela sensação generalizada de insegurança causada pelo terrorismo e pela normalização indesejada da ocupação, como se ela não fizesse parte do cotidiano israelense. Vale dizer que o próprio governo Netanyahu, no poder há quase uma década, estimula essa situação em que Israel evita assumir sua devida parcela de responsabilidade sobre o que ocorre com os palestinos, sempre se blindando por trás do argumento – absolutamente justificado – do medo.
Essa posição, que desvincula terrorismo e ocupação, e atribui ao terror causas intrínsecas ao povo palestino ou à religião islâmica, vem sendo reproduzida, por vezes acriticamente, pelos meios de imprensa e pela própria diáspora judaica no Brasil.
Como consequência desse processo, as negociações de paz entre israelenses e palestinos encontram-se completamente paralisadas. Parece claro que as soluções tentadas desde os Acordos de Oslo, há mais de vinte anos, não são mais suficientes para construir a paz baseada na solução de dois Estados. A relutante mediação norte-americana provavelmente chega a seu fim com o governo Trump, ao passo que nenhum outro país, ou grupo de países, parece reunir condições políticas para desempenhar um papel decisivo na superação do impasse atual.
Por isso mesmo, qualquer saída para o conflito israelo-palestino, no médio prazo, está na renovação de negociações bilaterais entre Israel e a Autoridade Palestina, amparada por mediação multilateral – não mais exclusivamente centrada nos Estados Unidos, no Quarteto ou na Liga Árabe, mas sim num grupo ampliado de países, no qual o Brasil pode dar sua contribuição.
Nesse contexto, a comunidade judaica no Brasil tem uma função duplamente importante. Em primeiro lugar, por meio de suas instituições, pode-se buscar uma agenda proativa e propositiva junto ao governo brasileiro sobre que posições adotar a respeito do futuro do conflito israelo-palestino. Ainda que sejam limitados os canais de diálogo com as instâncias responsáveis pela política externa, do Itamaraty ao Congresso Nacional, os representantes comunitários têm sido exitosos em defender suas pautas. Agora é transformá-las em ações sistemáticas, visando o longo prazo.
Uma relação mais próxima e construtiva entre a comunidade judaica e a política externa brasileira não passa somente pela aproximação dos círculos de poder político. É também fundamental que se construam, dentro da própria diáspora, denominadores comuns sobre os grandes temas que são caros à relação entre os judeus brasileiros e Israel, buscando dirimir as diferenças pontuais intracomunitárias que levaram aos atritos recentes. Iniciativas como o IBI buscam, de maneira inovadora, atender a esse anseio.
Além disso, o trabalho da comunidade com outros grupos – diásporas árabes, organizações muçulmanas, lideranças evangélicas e católicas – é essencial para que suas pautas ganhem força política, amplitude e ressonância. A construção de uma base comum de demandas e expectativas sobre a paz no Oriente Médio, contudo, é diferente de alinhamento acrítico ou meramente tático de setores judaicos com grupos que apoiam Israel por razões que, em última análise, não são compatíveis com o interesse de longo prazo dos judeus ao redor do mundo.
Em segundo lugar, e finalmente, a comunidade judaica pode e deve exercer um papel de pressão política junto ao próprio governo israelense. Há laços importantes de interdependência econômica e estratégica entre os dois países que são mediados pela diáspora judaica. Os intensos fluxos de judeus brasileiros para Israel para negócios, turismo, estudos, ou até mesmo para fazer aliá, podem ser ativos cruciais na construção desse diálogo. Se é verdade que a construção da paz deve partir de Israel e dos palestinos, é também verdade que a responsabilidade sobre as gerações futuras de israelenses é de todos que possuem vínculos com Eretz.
Essa minha constatação, que fique claro, não parte de posições apaixonadas. Há precedentes históricos mostrando que a diáspora pode desempenhar papel decisivo na concretização de grandes projetos. As condições já estão dadas: estou seguro de que o maior engajamento da diáspora, amparando e legitimando a atuação das instituições comunitárias, nos levará para mais perto de nosso desejo comum, que é a paz e a prosperidade em Israel e no Oriente Médio.
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