“Correntes liberais democráticas estão perdendo terreno no mundo”, afirma Tito Milgram

O historiador e museólogo brasileiro Avraham Milgram, 67 anos, está preocupado. Para ele, o mundo de hoje se parece ao das vésperas da Segunda Guerra. Em Israel há 45 anos, ele foi, por mais de três décadas, pesquisador do Yad Vashem, o Museu do Holocausto em Jerusalém. Milgram também é autor de “Os judeus do Vaticano” e “Portugal, Salazar e os Judeus”, entre outros livros.

Nascido na Argentina, mas criado em Curitiba, Milgram imigrou para Israel em 1973, onde descobriu que o Holocausto não era apenas uma questão pessoal, uma tragédia que vitimizou boa parte de sua família. Ele define o antissemitismo como um componente integral da cultura ocidental cristã. Mesmo apontando progressos em relação a essa questão, ele se diz preocupado com os rumos de líderes na Europa e na América. Milgram concedeu a seguinte entrevista ao IBI:

Mais de sete décadas depois do fim do Holocausto e da criação de Israel, a sensação é a de que a expressão “Nunca mais” está sendo esquecida. Observamos um aumento no antissemitismo no mundo, até em países como Estados Unidos, Alemanha e Brasil. O que o senhor pensa disso?
De fato, acho que o mundo em que nós estamos vivendo hoje é muito parecido com o de quase 100 anos atrás, dos anos 20 ou 30 (do século XX). Novamente, aquele ufanismo, um patriotismo excessivo, um nacionalismo, um particularismo, tendências antiliberais, anti- democráticas. Lembra muito aquele período anterior à Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, a tendência de continuar a cultuar algo que incomoda muito a essas correntes, como é, sem dúvida, a memória do Holocausto, é um fator que impede o progresso de correntes ultra-nacionalistas, fascistas.

 Ainda impede?
Sim. É difícil saber o que vai acontecer. A história não se repete. Ela apenas nos lembra fenômenos e fatos passados, mas jamais se repete porque as condições são sempre outras e novas. Mas, mesmo assim, eu diria que a memória do Holocausto ainda é muito forte. Primeiro, porque o final do Holocausto ocorreu há poucas décadas, sobreviventes ainda estão vivos. Cá e acolá, ainda há assassinos vivos, também. Houve um processo muito grande de construção de museus nos últimos 20 anos.  O Holocausto se tornou um ícone e um fator primordial na cultura ocidental. Ainda mantém a sua força.

Isso pode mudar?
Há um espírito, hoje em dia, em diversas partes do mundo, de racismo, de transgredir direitos humanos, tentar enfraquecer as estruturas liberais e democráticas dos Estados e debilitar o sistema judicial. Mesmo assim, a memória do Holocausto ainda é um fator importante e que deve servir como um escudo contra todos esses processos. Mas, quero dizer uma outra coisa que é quase que um lugar comum: devemos aprender do passado. No entanto, os seres humanos voltam a repetir erros. Acho que há uma obrigação de aprender com o passado e uma incapacidade de implementar as lições desse passado. 

É uma coisa inerente ao ser-humano ou algo social?
Quando se diz: “devemos aprender do passado”, quem fala isso, em geral, são pessoas de bonafide, que têm boa fé e que querem cultivar valores democráticos, liberais, de respeito à vida humana etc. Mas o mundo não funciona assim. O mundo funciona por interesses, por força, por mitos. Então, temos sempre este conflito entre duas culturas: a cultura universal e a cultura particular, o único e o geral, afirmações do ethos nacional versus afirmações de valores gerais. 

O senhor teme um novo Holocausto?
Particulamente, estou muito preocupado. Dezenas de anos de uma sociedade europeia, que chegou a grandes progressos intelectuais e espirituais e culturais, ruíram como um castelo de areia, há 100 anos. Dezenas de anos de educação cívica, democrática e liberal não serviram como dique para essas correntes de ultranacionalistas, que quiseram destruir aquele mundo para construir uma nova ordem social e política baseada em raça, em hierarquia de povos. 

Esse tipo de retrocesso pode acontecer em qualquer lugar?
Tome, por exemplo, os Estados Unidos. É um país que acreditávamos ter uma estrutura inabalável em termos democráticos, de liberalismo. Lá, a memória do Holocausto sem dúvida tem um lugar importantíssimo, primordial, como exemplo do que não deve ser feito. Mesmo assim, vemos que foi eleito um presidente com um jeito exótico, primitivo, violento, que desrespeita os direitos humanos, os imigrantes e os fracos. Quer impor tudo pela força. E onde está tudo aquilo que fizemos, que conquistamos? Também isso ruiu como um castelo de areia.

Há uma preocupação com o Brasil, também?
Claro, acho que é uma preocupação universal. Percebo pelos meus amigos que eles estão extremamente preocupados com o que vai acontecer, com alguém que se orgulha de ser o Trump brasileiro. Alguém que quer destruir uma certa ordem e construir uma nova ordem baseada em força, em nacionalismo, em religião, dando ênfase a valores extremamente particularistas e evitando valores universais como solidariedade e que coisas assim. Eu acho que, nesse sentido, o Brasil está num processo muito semelhante ao que ocorre na Hungria, na Polônia, na Rússia de Putin, na Turquia de Erdogan, nas Filipinas de Duterte e, de certa forma, na Israel de (Benjamin) “Bibi” Netanyahu. O mundo está tomando um rumo bastante negativo e que as correntes liberais democráticas estão perdendo terreno para esse tipo de discurso.

O que o senhor pensa da aparente proximidade entre Netanyahu e Bolsonaro?
“Bibi” Netanyahu tem interesse que o Brasil transfira a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, mas me preocupa mais a aproximação de Netanyahu com os outros líderes e regimes que eu mencionei agora há pouco. Ele é muito mais próximo, em termos de plataforma política ideológica, a um Viktor Orban, da Hungria, Andrzej Duda, da Polônia, e, eventualmente, ao Sebastian Kurz, da Áustria, que são países extremamente anti-islamistas, anti-imigrantes. Ele está tentando até a dividi-los dentro da Comunidade Europeia, aproximá-los ao discurso dele, ao discurso de Israel. Acho que isso é um fenômeno bastante negativo, que preocupa principalmente a judeus que vivem nestas partes e que temem, e com muita razão, estas linhas, estas plataformas ideológicas, nacionalistas, religiosas, intolerantes, que querem criar sociedades homogêneas.

Por quê?
Porque, em algum momento, a questão judaica vai surgir, porque sempre, nessas situações, o judeu vai ser visto como o outro e que não faz parte desta sociedade homogênea. Acho que é até uma ironia que o sionismo, que surgiu para, entre outras, proteger judeus em qualquer parte do mundo e trazer uma solução à miséria judaica, esteja promovendo e fortalecendo estas tendências que tradicionalmente são anti-judaicas.

É um erro que Israel se aproxime, então, de alguns países que regimes de direita?
Esses regimes de direita não assimilam um discurso mais liberal de aceitar as verdades históricas. Ou seja, a gente tem que tomar cuidado com a diferença entre interesses estatais e abrir mão dos nossos interesses judaicos nacionais, de preservar a verdade histórica. Porque essa verdade é importante não só para nós, judeus. Ela é importante para os povos europeus também. Para todos.

Como o Holocausto é visto, hoje, na América Latina?
A memória do Holocausto, como muitas coisas na América Latina, chegou atrasada. São modas ou padrões que surgem nos Estados Unidos, na Europa, e, na América Latina, chegam com muitos anos de atraso. Mas chegou. O fato é que, nos últimos anos, começa a se notar a criação de museus do Holocausto. Em Curitiba, há um museu há quase 10 anos. Agora, está sendo construído um Museu do Holocausto em Buenos Aires. No Chile, também há um museu judaico com um capítulo sobre o Holocausto. Houve tentativas, algumas mais felizes, outras não, de introduzir um currículo sobre o Holocausto nas escolas. É certo que educadores vêm a importância do ensino do Holocausto, principalmente em sociedades onde há atritos, onde há sensibilidades étnicas, racistas. Certamente, o ensino do Holocausto é um grande subsídio, não só para conhecer o que ocorreu na Europa como para incutir, introduzir valores de respeito. Mesmo assim, é preciso considerar que o Holocausto ocorreu na Europa, longe da América Latina, e há uma certa dificuldade em transformar essa temática em algo que diz respeito aos latinos.

Como é a visão do Holocausto nos países árabes?
Nesse caso, posso falar de uma situação de branco e negro. Nos países árabes, não só não há espaço para a memória do Holocausto, como a negação do Holocausto é um fenômeno amplamente difundido, principalmente entre aqueles que acreditam na tese de que o Estado de Israel surgiu como um produto do que aconteceu na Europa e os árabes, os palestinos, sofrem de uma tragédia que ocorreu um outro outro continente. Por exemplo, a “Lista de Schindler” já passou no mundo inteiro. Mas não nos países árabes. Lá, ninguém viu.

O que deve fazer a comunidade judaica no Brasil para tentar evitar o antissemitismo?
Não sei se estou em condições de dar conselhos para a comunidade judaica no Brasil. Eles vão escolher o caminho que quiserem de acordo com seus valores e interesses. Certamente eles querem continuar a fazer parte da família dos brasileiros sem abrir mão da identidade judaica. Para isso, deverão continuar a manter suas características dos judeus, que é a cultura, a língua, o contato com Israel, a memória do Holocausto, o estudo da História judaica, a memória coletiva, a solidariedade com judeus de outras partes do mundo e, acima de tudo, a vontade de ser e encontrar um sentido de ser judeu dentro da sociedade majoritária.

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