Eu até tenho um amigo judeu…

Uma pergunta já clássica questiona se alguém pode ser intolerante com sua própria identidade. Por vezes se fala sobre o racismo de negros com negros ou machismos perpetuados por mulheres, mas dificilmente alguém argumentaria que um judeu pode ser antissemita – embora sejam comuns as referências ao “auto-ódio”. Na verdade, essa tem sido muitas vezes uma desculpa contra a acusação de antissemitismo: se somos judeus ou se existem judeus argumentando conosco, é absurdo afirmar que somos antissemitas. Mas esse enunciado sempre me pareceu muito próximo à desgastada alegação contra uma acusação de racismo: “não sou racista, pois tenho amigos negros”. Assim sendo, acredito essa questão exija uma reflexão mais profunda.

Antes de mais nada, devemos postular o que é o antissemitismo. Nesse campo o filósofo esloveno Slavoj Zizek é preciso. Ele afirma que, para ser antissemita, não basta simplesmente que alguém odeie judeus, ele deve odiar judeus por eles serem judeus. Podemos conceber alguém que odeie judeus sem ser antissemita quando, por exemplo, alguém que mora em um prédio repleto de judeus se incomoda com o barulho deles. Essa pessoa odiaria judeus “acidentalmente”, pois não agregaria nenhum valor de antissemitismo: essa pessoa não os odeia pelo fato desses serem judeus. Sendo assim, para ser antissemita uma pessoa deve não somente odiar judeus, mas associar a eles uma essência secreta que os transforma em algo abominável. Ou seja, não é suficiente acusar de conspiração judaica global, deve-se também dar um bom motivo para ela existir. Essa essência maior e absoluta é, segundo Zizek, aquilo que torna esse ódio um fenômeno social. Ele menciona que é justamente isso que possibilita um nazista, que encontra um “bom judeu”, odiá-lo, visto que tal bondade, dentro da lógica antissemita, seria somente uma máscara de sua essência tirânica real.

Nessa lógica, judeus não só poderiam ser antissemitas como, de certa maneira, seriam os melhores nessa arte, uma vez que ninguém melhor do que eles para postular sobre o que seria a sua verdadeira essência, por trás de todas as ações desse povo.

As teorias pós-coloniais argumentam que a maior vitória do colonizador é imprimir no colonizado a imagem da colonização. Ou seja, o colonizador naturaliza o seu domínio no instante em que o dominado aceita sua posição inferior e tem como seu objeto de desejo tornar-se o colonizador. O colonizado deseja ser parte do modelo de civilização apresentado pelo colonizador, ele deseja ser aquilo que a ordem determina como normativo e em muitos casos tornar-se o caso emblemático daquilo. Dessa forma, o colonizador aparenta não usar de violência e sim estar auxiliando o colonizado na realização de sua vontade. O que antes era atingido através de opressão, receberia o nome de desenvolvimento e progresso. Exemplos disso são relatos de violência aplicada por policias negros contra negros na tentativa de “mostrar serviço” e tornar-se emblemas da ordem colonial através do seu compromisso com esse modelo. Esse é, de forma bem superficial, o argumento presente nas já clássicas teorias de Frantz Fanon comentando sobre a colonização da África e de Edward Said em seu comentário sobre a visão ocidental do oriente.

Gostaria aqui de trazer um terceiro elemento dessa trinca, Albert Memmi, pois acredito ser justamente em seu pensamento que podemos encontrar a resposta para a pergunta proposta anteriormente. Se usarmos somente as teorias apresentas anteriormente, a resposta seria facilmente negativa, pois me parece que teríamos que buscar casos de judeus neonazistas, algo que, se existir, é insignificante.

Memmi, em seus ensaio ‘Existem Judeus?’ e em seu livro Emancipação dos Judeus 1, se debruça justamente sobre a questão da identidade judaica em sua diáspora tendo como pano de fundo a teoria da colonização apresentada em Colonizador e Colonizado apontando para uma outra direção. Ele aponta para o que gostaria de chamar aqui de antissemitismo daqueles judeus que negam o seu judaísmo visando se tornarem humanistas e cidadãos. Nesses textos ele argumenta que esses judeus, em suas diásporas, também foram colonizados e formaram a sua identidade partindo da perspectiva colonial sobre eles.

No primeiro texto ele conta sobre sua juventude na Tunísia mencionando que ele nunca se sentira judeu, no máximo um indivíduo de ascendência judaica mas que, normalmente, se definia como tunisiano ou mesmo francês. Em sua ‘diáspora’ na França, ele amava tudo que via, ele queria ser francês, um cidadão do mundo, um humano como qualquer outro. Essa era a bandeira dos movimentos esquerdista de sua juventude: a identidade humana acima de tudo. Essa era justamente a bandeira utilizada contra aqueles movimentos de antissemitas que buscavam marcar o judeu em sua distinção. Ou seja, contra o fascismo, devemos todos nos posicionar como iguais. No entanto, Memmi conta que com a passar do tempo essa narrativa se demonstrou insuficiente.

A definição de ‘humano’, para ele, passou a se tornar estranha e quase sinônima à definição de europeu. Era humano somente aquilo que a civilização europeia, no auge de seu humanismo e boas intenções, definia como humano. Ele pareceu se perguntar, mesmo que inconscientemente, a pergunta de seu semi-conterrâneo Foucault: quem inventou o ser humano e para que proposito ele serve? Da mesma forma que Fanon e Said apontavam para Europa e demostravam a violência na formação identitária da África e do Oriente Médio, Memmi aponta para a Europa e acusa o seu humanismo de colonizar a identidade judaica. Segundo ele, esse pseudo-universalismo é justamente a última arma, e talvez a pior, do movimento colonial. Quando o humanista argumenta não ver diferenças entre as pessoas, ele simplesmente afirma que todos devem ser europeus, filhos de uma mesma civilização, falar a mesma língua ou partilhar da mesma racionalidade, afinal, somos todos humanos. O judeu colonizado se diz judeu no máximo dentro de casa, na rua, ele é um cidadão como qualquer outro. Ele deve apagar e negar tudo que ele possui de judaico. Mais que isso, ele deve olhar para todos aqueles que se negam a progredir com ele como “atrasados”. Ou seja, a marca do judeu é a marca do atraso que deve ser constantemente apagada na sua emancipação como cidadão. Memmi parece indicar que a prometida emancipação mais parece um processo disciplinar de formação identitária.

Memmi dedica o ultimo capitulo de seu livro à condição impossível do judeu. Ele não é um cidadão como qualquer outro por ser judeu ao mesmo tempo que jamais deixa de ser um membro da sociedade. O autor argumenta os judeus aparentam escapar de qualquer teoria sobre eles. Segundo ele, dentro dessas teorias, os judeus são como uma mesa de três pernas, no sentido de que sempre aparecem como exceção dentro de qualquer teoria que busque explicá-los: eles não são uma religião, nem povo, muito menos uma nação ou uma etnia, cultura também não parece ser preciso…aparentemente nos faltam conceitos para explicá-los, mas nenhum conceito criado parece ser suficiente.

Segundo o autor, tenta-se demonstrar que, essencialmente, o judeu cabe nas categorias imposta sobre ele, mas é seu papel recusá-las. Cabe a ele recusar a universalidade esmagadora e ser sempre herético e subversivo: ser particularmente incomodo a qualquer modelo que exige dele se encaixar.

Sendo assim, a resposta que Memmi – e eu – damos para a pergunta se existem judeus antissemitas é clara: não só existem como talvez sejam em maioria. Claro que não antissemitas no sentido tradicional de odiar judeus ou serem afiliados a movimentos neonazistas, mas antissemitas no sentido de negarem aos judeus uma parte vital do seu judaísmo. Eles são aqueles que acreditam em características essenciais judaicas transmitidas por milênios. Aqueles que falam de boca cheia de um espírito judaico que jamais pode ser abandonado. Eu, pessoalmente, nunca encontrei uma alma judaica, mas vejo judeus vivos se perguntando do seu judaísmo e construindo o judaísmo constantemente. Logo, aqueles que priorizam uma essência judaica rígida e absoluta, negam aos judeus aquilo que existe de mais judaico: o pensamento judaico – a questão e elaboração constante do judaísmo, ou seja, a obrigação judaica de fazer e realizar o judaísmo sem qualquer resposta ou eudaimonia.

Existem também aqueles que se dizem humanistas acima tudo. Aquele humanismo que não conhece o particular e o diferente, a universalização do colonial que no lugar da violência impõe a negação de si: ninguém pode ser nada além de humano, mas, retornado a Foucault, quem inventou esse humano? Sobre quais condições alguém se torna humano? Assim como nos grandes movimentos coloniais, a grande vitória do colonizar é tornar-se o objeto de desejo do colonizado. Enquanto não recusarmos tanto a universalização quanto o essencialismo em busca de um judaísmo real, seremos todos sempre antissemitas. Nossa missão deve ser aceitar-se diferente sem consentir que qualquer diferença nos defina. Aceitar-se judeus significa recusar qualquer condição para ser judeu.

Segundo Memmi, existem judeus enquanto existirem pessoas que tem a vontade de ser judeus, existem judeus enquanto existirem pessoas que questionam sobre a questão judaica. Não devemos cair no antissemitismo de permitir que nos universalizem e apaguem a opressão enraizada em nossa construção identitária. Somos filhos da perseguição, da diáspora, da humilhação contínua e da falta de casa. Somos esse ser amórfico que não cabe em nenhuma definição por mais universal que ela seja.

Retomando Zizek, é nosso papel recusar qualquer definição de judaísmo, tanto do antissemitismo tradicional quanto do contemporâneo. Aceitar-se como judeu é aceitar a não-definição do judaísmo, a não determinação que não seja autodeterminação livre tanto do poder colonial universalista quanto do poder essencialista que vem tanto de fora quanto de dentro.

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