Em memória de Shimon Peres, o sonhador realista

Foram muitos os que se reuniram naquele dia, há dois anos, para o funeral no cemitério nacional do Monte Herzl, em Jerusalém. Eram muitos, de todo o mundo, líderes atuais e ex-líderes, que se sentiram obrigados a prestar a última homenagem a Shimon Peres, o ex-presidente do Estado de Israel. Barack Obama, Bill Clinton, bem como o príncipe Charles, o primeiro-ministro francês François Hollande, a chanceler alemã Angela Merkel, o ministro das Relações Exteriores do Egito e muitos outros. Quem se destacou em sua presença entre a lista dos ilustres presentes foi Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, que não encontrou nem dialogou com nenhum líder israelense por muito tempo. A presença de Abbas, segundo Obama, foi “um gesto e uma lembrança dos negócios inacabados da paz”.

Realmente, o “negócio da paz” entre Israel e os palestinos ainda está longe de ser resolvido. Mais ainda, a realidade atual no Oriente Médio é bem diferente e muito mais complicada do que aquela que testemunhamos e vivemos nos primeiros dias de setembro de 1993, quando foi assinada a Declaração de Princípios, conhecida como “Acordos de Oslo”, nos gramados da Casa Branca, em Washington.

De forma pessoal, o engraçado é que 13 de setembro de 1993 foi o dia em que eu, jovem diplomata que acabara de voltar de sua missão no exterior no Equador, iniciei minha nova missão como conselheira do Diretor Geral do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Embaixador Uri Savir, que foi o chefe negociador destes acordos. Esse foi o dia em que embarquei numa estrada que se tornou um marco na minha vida, uma experiência profissional fascinante que me levou a trabalhar com Shimon Peres, o Ministro das Relações Exteriores da época, que trabalhou incansavelmente pela paz e sonhou a paz. Naquele mesmo dia, eu estava na “Sala de Situação” do Ministério das Relações Exteriores, em Jerusalém, enquanto Rabin, Peres e sua comitiva chegavam a Washington. Havia muita ação no Situation Room, os telefones não paravam de tocar, as pessoas entravam e saíam e eu estava ocupada coordenando, informando e fazendo as muitas outras tarefas que eram necessárias lá. Obviamente, eu ainda não estava ciente da grandeza daquele momento e do impacto que isso causaria nos israelenses, palestinos e na geopolítica mundial, e também, se eu puder acrescentar modestamente, da minha própria vida profissional.

Peres percorreu um longo caminho até se tornar o “Homem da Paz”. Servindo Israel por mais de 50 anos, de Ministro dos Transportes e, depois, da Comunicação, a Ministro das Finanças, três vezes Ministro das Relações Exteriores, duas vezes Ministro da Defesa, duas vezes Primeiro-Ministro e, por último, Presidente do Estado, Peres foi considerado um Falcão em seus primeiros dias, mas terminou sua vida como a maior pomba de todos os tempos. No final dos anos 50, quando era diretor-geral do Ministério da Defesa, sob o governo de David Ben-Gurion, chegou a um acordo sem precedentes com o governo francês para o fornecimento de armas ao pequeno e isolado Estado recém-nascido, algo que os Estados Unidos se recusou a fazer até muitos anos depois. Foi aí que teve início o seu papel como arquiteto da indústria de defesa de Israel e, mais especificamente, como fundador do programa nuclear israelense. “Você deve construir a força porque isso pode economizar o uso da mesma”, ele dizia, estabelecendo, assim, as bases da política de alerta de Israel que ainda é relevante hoje. Sim, ele ajudou a tornar Israel forte, ao mesmo tempo em que acreditava que a paz tornaria Israel ainda mais forte. A força é necessária, ele pensava, e é, em si mesma, a arma estratégica de Israel, mas o objetivo é não usá-la. O objetivo é construir relações, e pontes entre os povos, e fazer da paz a alternativa desejada e preferida na guerra.

Me lembro claramente de uma das noites de inverno em Paris, em 1994, após um evento impressionante e inspirador na UNESCO, com a participação das “quatro partes regionais”: Arafat, em nome da OLP, Príncipe Hassan, da Jordânia, Amr Moussa, Ministro das Relações Exteriores do Egito e Shimon Peres. A conversa que aconteceu mais tarde entre Peres e Moussa, em sua suíte no hotel onde foi hospedada nossa delegação, se tornou muito rapidamente uma dura disputa. Mussa alegava que o fato de Israel continuar rejeitando fazer parte do Tratado de Não-Proliferação (TNP) era a prova de que Israel detinha armas nucleares. Fiel à estratégia de alerta de Israel, Peres recusou essa exigência (mais uma vez) declarando a política oficial de longa data de Israel, segundo a qual Israel não será o primeiro a introduzir armas nucleares na região. Peres era o mesmo estadista que lutou por acordos de paz com os palestinos e estava disposto a fazer concessões para consegui-lo, mas nunca em troca da segurança do Estado de Israel.

Então, o que tornou possível esse processo, apesar das fortes posições de segurança, das quais nem Rabin nem Peres estavam dispostos a abrir mão? Qual o segredo que tornou essas negociações viáveis, apesar dos muitos obstáculos, desacordos e brechas entre os negociadores israelenses e os palestinos?

Bem, o segredo está na intenção, no objetivo sincero de ambos os lados concordando que “estamos falando sério”. O segredo está no entendimento de que ambos os lados desejam chegar ao um terreno comum, embora a estrada esteja cheia de desafios e longe de ser simples, mas há uma necessidade de enxergar além dela.

Processo de paz, dizia Peres, é feito entre inimigos. O desafio é grande, as vezes impossível. Então? Como fazê-lo? A resposta tem a ver com a figura do líder e seus valores, e deve chegar por dentro dele, de sua convicção genuína de que a paz é melhor do que a guerra, de que a paz é a direção certa, sem sempre saber como, sem sempre ter todas respostas, sem sempre saber como superar as dificuldades e as muitas crises, ou resolver as divergências.

É dever do líder oferecer esperança, abrir horizontes, ele acreditava. É o papel dele olhar para frente, além do momento atual. E, sim, essa atitude carrega um preço, e o líder deve estar disposto a pagá-lo para ter sucesso em sua missão. Politicamente, é quase um suicídio, porque os resultados são esperados apenas no longo prazo, mas é obrigação moral dos líderes pensar no futuro, nas gerações futuras, e tomar decisões que nem sempre são populares.  Essa era a crença de Shimon Peres e essa foi a noção que prevaleceu em todo o seu ser.
 
Sim, Rabin pagou por isso com a vida, e Peres pagou com seu futuro político, que foi interrompido (embora tenha sido eleito para o papel mais simbólico de Presidente do Estado de Israel). Mas os resultados não são apenas sobre Rabin e Peres. Os resultados têm a ver com todos nós e com a realidade que ainda estamos vivendo, ainda mais complicada desde então.

“Ainda está otimista sobre a paz entre israelenses e palestinos?”, ele estava acostumado a ser questionado. “Não há situações sem esperança, há apenas pessoas sem esperança”, ele respondia, e eu modestamente adotei sua visão.
 
Ele tinha contradições? Sim, bastante, mas faziam parte do seu charme e grande singularidade. Peres era sonhador e visionário, e ao mesmo tempo uma pessoa muito prática e um verdadeiro “fazedor”. Foi o homem que mais lutou pelo estabelecimento e consolidação da força de Israel, mas viu a paz como nossa principal força. Foi o estadista que soube construir as pontes internacionais mais importantes em benefício do Israel e fortalecer sua posição diplomática mundial e sua economia, e ao mesmo tempo não abandonou e não abriu a mão dos interesses do Estado. Ele era um intelectual que sempre carregava na bolsa, ao longo de suas viagens pelo mundo, quatro, cinco livros, e nunca parou de aprender e de se atualizar, e ao mesmo tempo era curioso e fascinado como um garoto com todas as inovações científicas e tecnológicas de Israel, tendo sido o maior porta-voz de nossa inovação e da criatividade, olhando sempre à frente de todos os outros. Ele era um estadista sábio e experiente que viu muito mais longe e mais profundo do que qualquer outra pessoa; as portas mais dignas e importantes do mundo estavam abertas para ele e, ao mesmo tempo, era uma pessoa calorosa, apaixonada, cheia de alma, que amava as pessoas que trabalhavam com ele e gostavam de sua proximidade e confiança. Homem laico e cheio de valores judaicos, homem israelense e ao mesmo tempo homem do mundo.
Tive a sorte de trabalhar com Shimon Peres por sete anos, com esse homem que se transformou em meu mentor e que me deu asas. Faz dois anos que não está mais conosco. Sentimos a sua ausência e ao mesmo tempo sentimos que está presente em nossos corações e mentes para sempre.

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