“Nunca me contaram” ou a história inteminável dos comentários de Seth Rogen sobre Israel

O mundo judaico está em polvorosa. Não por causa dos protestos em Israel, do medo da guerra contra o Hezbollah, da tentativa de infiltração terrorista oriunda da Síria, do míssel disparado de Gaza contra Sderot. Mas por comentários de um ator judeu canadense, Seth Rogen.

Rogen é um comediante famoso. Roteirista e ator em filmes como “Superbad”, “Sausage Party”, “The Disaster Artist” e “Neighbors” 1 e 2. Um dos seus filmes, “The Interview” causou uma crise diplomática entre os Estados Unidos e Coreia do Norte. No filme, dois jornalistas são contratados pela CIA para assassinar Kim Jong-Un, ditador do país. Pyongyang ameaçou tomar medidas drásticas contra os EUA. No fim, o grande desastre causado pelo filme é a falta de graça.

Em uma entrevista para o podcast, o ator disse que “Israel não faz sentido” pois é “baseado em religião, e eu não concordo com isto, pois acredito que religião é algo estúpido”. E continuou: “Se é sobre a preservação do povo Judeu, não faz sentido, pois não se coloca o que se se procura preservar em apenas um lugar”. Não obstante, Rogen de certa forma culpou sua educação judaica, que teria “alimentado uma série de mentiras sobre Israel. Nunca me foi dito que haviam pessoas ali, eles fazem parecer que [a Palestina]* estava ali, como se a p**** da porta estivesse aberta!”. Rogen também criticou judeus ultra-ortodoxos, dizendo que são produtos de incesto e repletos de doenças genéticas.

Obviamente a rede de comentários do mundo judaico não deixou a oportunidade passar. Setores mais conservadores foram categóricos: Rogen é um traidor do povo judeu, talvez um antissemita. Outros disseram que eram comentários ignorantes que desconheciam a realidade e a história de Israel, do povo judeu, etc. Em uma era de cancelamentos e desculpas públicas, era esperado que Rogen eventualmente lançasse uma nota em público dizendo que errou e o mundo seguiria seu rumo. Isto não aconteceu. Passados alguns dias, o chefe da Agência Judaica, Itzhak “Bougie” Herzog, postou no Twitter que havia conversado com Rogen via Zoom, que o ator havia se desculpado e que suas palavras foram tiradas de contexto, pois haviam sido proferidas em uma conversa casual, humorística.

Logo após, Mairav Zonszein, editora da revista online 972mag situada decididamente no campo antissionista ou ao menos da extrema-esquerda, twittou que a atitude de Herzog era ridícula e que Rogen havia lhe mandado uma mensagem dizendo que ele somente havia concordado em conversar pois a Agência Judaica havia enviado uma carta para a mãe dele, implorando por uma oportunidade de conversa. No momento em que escrevo este texto, a última aparição pública do ator foi em uma entrevista com o jornal Ha’aretz, em que ele reitera que suas declarações foram tiradas de contexto, porém que sua educação judaica não lhe contou a história de Israel com a complexidade necessária.

Deixando de lado minhas impressões pessoais sobre artistas se meterem a comentar assuntos dos quais eles pouco entendem, existe algo relevante para ser comentado aqui. Por qual motivo a blogosfera, indivíduos privados e organizações judaicas se viram impelidos a comentar tal episódio?

A ideia de que algo foi “escondido” no mundo da educação judaica sobre Israel não é nova. É a base do grupo antissionista IfNotNow, conhecido por sua tática de infiltração em grupos de jovens judeus que viajam para Israel, especialmente do programa Taglit-Birthright. Tais viagens, estabelecidas para criar um sentimento de pertencimento compartilhado em relação à Israel, são vistas pelos críticos antissionistas como uma plataforma de exclusão dos palestinos. A ideia é a mesma: as viagens e o establishment organizado do mundo judaico nos EUA, os summer camps onde a vasta maioria dos jovens judeus adquire sua educação informal sobre Israel, sinagogas, Hillel, todos seriam parte de uma campanha de desinformação. 

Seria Seth Rogen um ativista antissionista radical que odeia o povo judeu? É bastante provável que não. Porém a consonância de ideias provoca um arrepio nos que ainda se vêem como defensores das ideias do sionismo. A ideia de que ideias radicais estariam se infiltrando entre jovens da comunidade judaica é algo que assombra muitos: o que será da continuidade judaica se o mundo judaico se desconectar de Israel e pensar como Rogen que diz que “minha esposa é judia mas eu não me importaria se não fosse”?

Mordecai Kaplan, rabino e intelectual americano, já escrevia em 1951 em seu livro “O Novo Sionismo” que havia uma ruptura anunciada entre os judeus de fora de Israel e os Israelenses. Para Kaplan, os judeus israelenses se viam primariamente como israelenses e não como judeus e isto causaria um afastamento irremediável entre as partes. A percepção de que Israel representava o verdadeiro judaísmo seria um golpe mortal para as relações entre os pólos.

Apenas três anos após a fundação do Estado em 1948, Kaplan já pressentia algo que vemos hoje em dia. O Instituto Reut, think-tank israelense que publica pesquisas sobre Israel, relações internacionais e relações com o mundo judaico, explica que a imagem de Israel se modificou de maneira significativa nas últimas décadas. Três eixos de percepção de Israel estavam se deslocando: a ideia de democracia israelense, a ideia de Israel como um país que deseja paz e de que o país de fato representa o povo judeu. A realidade era clara: desde 1994, a paz com os palestinos se pulverizou – da Segunda Intifada, Guerra do Líbano e as operações contra o Hamas. O Rabinato, orientado somente para a Ortodoxia Judaica e desconectado mesmo da maioria da população israelense, se torna mais um fator alienante. A maioria dos judeus na Diáspora, ou não-religiosos ou pertencentes à denominações não-ortodoxas de Judaísmo, viam as interpretações percebidas como medievais como algo alienígena. Rabinos comentando que mulheres são inferiores e um rabino-chefe dizendo em público que negros são próximos a macacos somente confirmam tal ideia. Por fim, ideias e declarações como a Lei de Israel como o Estado-Nação do Povo Judeu, que aparentemente correm contra ideias de multiculturalismo que são prevalentes na maioria das democracias ocidentais, somente aumentam o desconforto.

As relações do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu  com Donald Trump, Bolsonaro e Viktor Orban, presidente da Hungria, seriam a confirmação de que Israel seria um país que pouco oferece em termos judaicos: um regime nacionalista, cujo monopólio religioso encampa uma visão militante de fé que exclui a vasta maioria de judeus do mundo, descompromissado com as ideias de paz que soam naturais aos ouvidos da maioria. Repudiar a guerra e abraçar a paz não é algo polêmico ou concencioso, afinal.

O resultado me parece óbvio: se Israel traiu todos os princípios, provavelmente algo mais problemático seria o pano de fundo desta história. Na narrativa do BDS – o movimento organizado de boicote à Israel -, IfNotNow e outros grupos, Israel não é o fruto da libertação nacional judaica, mas um Estado supremacista fundado em exclusão racial (como o apartheid sul-africano) e coerção diária contra a minoria palestina. A Guerra de Independência de Israel em 1948 é apresentada como uma tentativa de extermínio dos palestinos por uma horda de colonos invasores.  

Obviamente o resultado de tais iniciativas tem um potencial devastador: o isolamento de Israel e seu tratamento como um Estado-pária, como Pretória foi ao fim do apartheid. O #nuncamecontaram por fim, nos ouvidos daqueles que se veem no campo sionista, muitas vezes se mescla com ideias mais profundas, obscuras de que judeus controlam canais de informações e ideias, se confundindo com ideias antissemitas conhecidas.

Um último motivo emana da própria sociedade israelense. Os protestos atuais mostram que a solidariedade básica entre cidadãos de Israel, tão enfatizada pela educação judaica, está em frangalhos. Protestos contra violência policial, denúncias de racismo e de que a desigualdade é rampante em uma sociedade que se vendeu durante anos como fundada em igualitarismo e liberdade erodem tal visão ainda mais rapidamente. A linguagem do sionismo parece ser utilizada ou como moeda de troca em eleições, onde acusações de “não ser suficientemente sionista” ou mesmo a traição de ser antissionista são comuns. O termo pouco é ligado à ideia de nacionalismo judaico ou de uma cultura soberana. Com o plano de anexação, a ideia de sionismo é ligada à um expansionismo territorial militante que pouco ressoa com a maioria dos israelenses ou dos judeus que moram fora de Israel. Ou seja, é uma crise dupla, de dentro e de fora de Israel.  

As frases casuais de Seth Rogen causam desconforto por tais motivos. A ideia de Israel como um centro do mundo judaico alimentou a criação do Estado e a manutenção do mesmo. Israel não passa mais a imagem de um pequeno David contra Golias – a imagem clássica do jovem rei de Israel lutando contra o gigante filisteu apenas com sua funda e algumas pedras que acompanha as descrições da luta de Israel contra as constantes invasões dos países vizinhos. As narrativas de heroísmo deram lugar às narrativas críticas.  No meu caso, imigrar para Israel foi uma solução, abraçando as contradições e fazendo delas minhas. Porém, muitos preferem de desconectar de Israel, pois é melhor do que sofrer o constrangimento de lidar com a constante problemática. A armadilha do pertencimento/desligamento, como chamo esta ideia, teria como resultado a completa implosão da conexão entre Israel e o mundo judaico, colocando em xeque a premissa de Israel como Estado Judeu. Se ao menos metade da população judaica mundial não se vê representada por Israel – qual seria a relevância de tal Estado?

Seth Rogen provavelmente não pensou nestas questões ao brincar no podcast. Porém são questões que são muito mais profundas. Em 2014, Rogen assinou um manifesto defendendo Israel em sua incursão em Gaza na Operação Tzuk Eitan, após o sequestro e assassinato cruel de três adolescentes israelenses e subsequente mísseis disparados pelo grupo terrorista Hamas contra território israelense. 

O que mudou?

*Uso do termo da época, utilizado pela Agência Judaica em seu material de divulgação, pela autoridades do Mandato Britânico e outros atores políticos.

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