Não farás para ti imagem de escultura ou ídolo

Quando Moshe Rabeinu recebeu as luchot haBrit, as tábuas da lei, já estava ordenado por D’us que estátuas seriam como uma abominação para o povo de Israel. Em Bereishit Rabbah, uma das histórias conta como Avraham Avinu quebra todas as estátuas de idolatria de seu pai, Terach, de maneira a demonstrar que estátuas não podiam ser deuses, mas apenas terracota ou argila.

“Lo ta’ase lecha pesel” iria seguir o povo judeu no exílio, onde a condição desempoderada de nosso povo não nos proporcionou grandes generais ou reis.

Estátuas equestres, monumentos de bronze, todos sempre pareceram ao nosso povo como chukat hagoyim, costumes dos não-judeus.

Um ditado cuja origem já não se sabe diz que, enquanto as nações do mundo lotaram prédios para serem museus com estátuas, os judeus colocaram sua memória e reverência no beit midrash, a sala de estudos onde gerações se debruçaram sob textos sagrados.

Porém o povo judeu não é separado da história do mundo. A modernidade e a emergência do Estado de Israel nos trouxer novos questionamentos, além de oportunidades antes fechadas para os judeus como coletividade. Com a entrada na sociedade das nações, construíram-se museus, nomearam-se ruas, prédios e estátuas. Por qual motivo não estamos derrubando-as como nos EUA, Inglaterra e outros países?

Fora o busto de Ben-Gurion no aeroporto, estátuas para indivíduos são contadas nos dedos. Temos o busto, uma estátua não-oficial do mesmo na praia de Tel Aviv e as estátuas no jardim da casa presidencial. Qual é a explicação?

A primeira é com a qual abri o texto: simplesmente por uma tradição milenar, não esculpimos estátuas. Mas isto seria como ignorar a tensão enorme na sociedade israelense, de indivíduos cuja filiação à nação judaica jamais implicou a observância dos preceitos da religião ou ouvir as vozes dos rabinos. Certamente, algo do monoteísmo ético e da tradição judaica informa a cultura israelense, pois o israelense médio estuda os textos bíblicos para o exame de admissão na universidade, participa de cerimônias religiosas dentro do escopo cívico (no exército, nas escolas) e no geral, comemora as festas religiosas.

Porém, isto não explica tudo. Acredito que boa parte do poder explicativo da ausência de estátuas é o mesmo que explica um episódio curioso. Quando morava no quase extremo sul de Israel, em um pequeno vilarejo universitário, minha caminhada matinal passava pelo túmulo de David Ben-Gurion, o primeiro-ministro que fundou o Estado de Israel e liderou o país durante anos. O local é pouco solene, não é vigiado por guardas ou sequer se destaca do resto das construções. Ali você via famílias fazendo piquenique e até mesmo casais da escola local trocando afagos. Soube que periodicamente um senhor beduíno que morava próximo ao local vinha admoestar os visitantes que deixavam lixo no local e dizia: “Como vocês podem ter tão pouco respeito pelo líder do país?” 

De fato, quando Ben-Gurion insistiu na sua proeminência no sistema político israelense, o jornal Ma’ariv não teve problema de publicar uma charge que mostrava o político destruindo uma estátua de si mesmo. 

A cultura política israelense nunca colocou seus líderes em pedestais. Tal como em Tehilim 146:3 – ל-תִּבְטְחוּ בִנְדִיבִים– בְּבֶן-אָדָם, שֶׁאֵין לוֹ תְשׁוּעָה – ou “Não confie em príncipes ou no filho do homem, no qual não há salvação”, o israelense médio sempre conviveu com um sistema onde a confiança na liderança não se constrói por hierarquia, mas pelas ações tomadas.

Durante o Mandato Britânico, o sistema de impostos para financiar a vida comunitária era basicamente uma questão de confiança. Antes da independência de Israel, a comunidade judaica era dependente da administração britânica, porém em questão de impostos, era autônoma para criar sua própria taxação. A participação no sistema político era voluntária, pois não havia um Estado que pudesse sancionar quem não cumprisse suas obrigações.

Em uma sociedade pequena que lutava por sua sobrevivência, confiança era então um reforço moral contra um mundo hostil. Ao mesmo tempo, os políticos em nada se assemelhavam com as estátuas equestres do Ocidente. Dentre a maioria judaica em Israel, a distância entre políticos e o povo sempre foi curta, ao menos em público. Imortalizou-se o que escreveu Efraim Kishon: “O único país do mundo em que o ministro da Fazenda se chama Moshe”. Para que construir estátuas de quem é igual a você?

O heroísmo das primeiras décadas do Estado de Israel, um lugar quase que espartano, nunca deu espaço para grandes heróis. Os heróis eram os pioneiros, os que lutaram em guerras, que desbravaram o deserto, os anônimos cujos nomes se leem em placas e se ouvem após o kaddish, a reza fúnebre que santifica o nome de D’us.

Um certo pessimismo existencial sempre rondou tal visão. Será que tal primeiro-ministro vai ser uma retidão moral para sempre? Menachem Begin, que acabou por enviar tropas e mais tropas para morrerem no Líbano? Golda Meir, face maior do desastre da Guerra de Yom Kippur e que comentou que os judeus mizrahim que protestavam por melhores condições de vida “não são boas pessoas”? Moshe Dayan? Ariel Sharon? Moshe Katzav, ex-presidente que foi preso por abusar sexualmente de uma subordinada tem um busto no jardim presidencial. Uma placa conta sua história.

Os exemplos são diversos. Políticos, generais, ministros que se mostraram humanos, com equívocos e complexidades. Os heróis de Israel nunca se tornaram ídolos, talvez pelo inconsciente coletivo temer a repetição de um chet ha’egel, o pecado do bezerro de ouro da geração do deserto. Antes de termos que derrubar estátuas, talvez seja melhor sequer construí-las pois já são dois mil anos nos quais elas trazem péssimos resultados. Não é  toa que no dia dezessete de Tammuz, o início das Três Semanas antes de Tisha b’Av – a data em que relembramos a destruição do Templo de Jerusalém, um dos sinais de mau-agouro é a estátua colocada no pátio do Primeiro Templo.

Um país com heróis, mas sem ídolos. Talvez seja a nossa chegada tardia no mundo da política internacional, mas muito antiga na história da humanidade. Teria sido muito difícil carregar estátuas nas expulsões, e muito pouco produtivo erigí-las quando as prioridades eram outras. Em Ética aos Pais, Pirkei Avot, já se escrevia “cuidado com o governo, pois se aproximam somente daqueles que servem às suas necessidades”. O conselho nos serviu bem até hoje.

No início do texto, expliquei que a tradição bíblica talvez fosse insuficiente para explicar o fenômeno de falta de estátuas. Talvez esteja errado, ou talvez explique metade. Como sempre, Israel é um país de contradições, antiquíssimo e moderno, acelerado mas que para por completo uma vez por semana. Talvez não precisemos de ídolos que não se movem. Ficariam para trás.

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