Israel líquida

Conceituar uma nação como líquida exige da imaginação um poder que permita ao leitor a exploração de temas sensíveis, de modo que esse exercício provocativo consiga trazer novas tonalidades para temáticas tão exauridas: o conflito, a disputa por territórios, a autodeterminação e a paz entre os povos palestino e israelense. 

É líquida desde sua concepção, no seu ideal: uma promessa a um povo, um povo que é escolhido, uma odisseia pelo deserto, a chegada à terra prometida e o erguer de uma nação. Conflitos, diáspora, holocausto, fundação, guerra por independência, ocupação de territórios, califados e então a contemporaneidade. Se é ofensivo tentar ser reducionista sobre algo tão singular, reproduzir todas as narrativas que nos trouxeram até aqui faria o debate ir contra o objetivo do texto – ser tão líquido quanto a própria ideia que deu-lhe corpo: a que Israel é um Estado líquido.

Por um lado, assumir a dor que essa liquidez trás pode ser reconfortante por outro aspecto. Quanto mais cedo admitirmos essa realidade, mais rapidamente poderemos sobrepor-nos sobre às dificuldades atuais e avançar em um sentido progressista para as questões urgentes. E a sustentação do amor ao argumento vem quando Zygmunt Bauman cria o conceito de liquidez para nos dar uma real dimensão sobre a constante que estimula a velocidade das coisas e suas relações. Por que não, então, aplicar a projeção desta ideia sobre o estado de Nação?

Isso levanta por seguinte a questão: o que é o inverso de nação líquida? Este é o caminho que nos dará a percepção para iniciar esse ensaio. Para Hobbes, em “Leviatã”, o Estado é a força que detém em si todo o poder da sociedade, podendo utilizar de coerção para realizar a manutenção da ordem, prover segurança e manter todo o perigo afastado para além dos muros. Hans Kelsen sedimenta este conceito ao explicar que o Estado deve ser um Estado de Direito, e o positivismo põe uma lógica jurídica dentro do ordenamento que se auto-legitima na medida que consolida suas doutrinas. O contrato social de Rousseau, assim como o sistema tripartite de Montesquieu, são clássicos exemplos de conceitos absorvidos pela sociedade moderna das culturas republicanas e democráticas de Estado de Direito, o que deu balizas para muitos países existentes, sejam eles constitucionalistas ou consuetudinários.

Ainda que embarcado de todos os conceitos singelamente mencionados, os Estados ainda se valem de fronteiras imaginárias (ou físicas, como na Cisjordânia), possuem um povo, uma língua, uma moeda, uma cultura, um hino, uma bandeira, um exército e o poder de autodeterminação. Reúna esses elementos e você tem a concepção de uma nação. 

Para explicar esse conceito, a liquidez do Estado de Israel foi dividido por quatro fenômenos sintetizados: 

A independência e autodeterminação são os primeiros fenômenos de liquidez. A sua autodeterminação não é originária do “fator gerador de Estado” se outras nações não reconhecem a sua existência e a independência emancipatória surge da ruptura do status quo, que, por sua ineficiência, não conseguia responder às demandas colocadas à mesa, seja por existir uma divisão natural de povos ou também por revoluções que culminaram com o surgimento de um novo Estado. Portanto, esse rompimento contínuo do establishment não seria uma das faces da liquidez?

Sua relação com outras nações, seja comercial, cultural ou bélica, é baseada em interesses recíprocos. Os países árabes que entraram em guerra contra Israel por não aceitarem sua existência, mas o Egito, a título de exemplo, hoje mantém relação diplomática com Israel e os Estados Unidos, sendo um agente promotor de estabilidade da paz na região. Os EUA têm interesse estratégico em proteger Israel, pois assim consegue ampliar sua presença militar na região, neutralizando as investidas da Rússia e Irã. Essa relação é completamente líquida, pois novos atores podem trazer novas resenhas e essa diplomacia multilateral pode desfazer-se, escorrendo como areia entre os dedos. Não é algo eterno, não é impossível de ser quebrado. Essa percepção é o segundo fenômeno de liquidez.

O terceiro fenômeno de liquidez é o tempo. A história cobre e descobre muitos fatos. Na narrativa judaica, Israel nasceu e morreu muitas vezes, ao longo dos séculos, e novos acontecimentos poderão reduzir seu povo novamente. Não há uma maneira de garantir que isso venha a se repetir. Por não ser eterna sua existência física, é líquida. 

O quarto e último fenômeno de liquidez é o nacionalismo. Desde os tempos mais remotos, temos nos organizado como tribos. Esse conceito nacionalista tem promovido mais divisão e miséria ao invés de integração e progresso. Ao classificar o outro como diferente, retira-se dele sua humanidade: ele é inferior porque fala árabe, tem uma pele mais escura, a região que nasceu é pobre, não tem educação, etc. Ao perder o contato com seu “eu” conterrâneo, palestinos e israelenses se furtam de uma oportunidade de construir um diálogo que promova a coexistência de seus povos. Ambos os lados tem imagens construídas sobre o outro que não corresponde à realidade, e essa noção de que o outro é o inimigo que quer destruí-lo é uma narrativa construída por agentes que têm se beneficiado do conflito nos dois lados. Uma consciência coletiva de pertencimento a um planeta, e não a uma nação, é um caminho que naturalmente iremos seguir, leve o tempo que for. Portanto, a ideia nacionalista é uma ilusão que a liquidez irá desmanchar com o passar dos anos. A força existente em se afirmar como nação e a narrativa nacionalista em torno de Israel tem sido sua maior arma, que coercitivamente tem expandido suas fronteiras para além dos muros da ocupação: o muro está fincado principalmente na mente das pessoas e essa poderá ser uma de suas ruínas. O discurso nacionalista tem agregado posicionamentos e pautas baseadas no ódio. E o ódio têm uma liquidez menor, quase indissipável, porque, no final, o que era pra ser uma terra segura para seu povo, tornou-se um espaço que promove o apartheid. Dentro dessa nova caixa você não cabe se não for ortodoxo suficiente, branco suficiente, ocidental o suficiente. É esse o caminho que o nacionalismo líquido tem tomado.

Cabe então fazermos a pergunta: o que é então uma nação líquida?

Israel tem-se tornado líquida por muitos fatores. Um deles é a crise de representatividade política que vive. Todos os países do mundo passaram ou passarão por sua “Primavera Árabe”, ao seu próprio modo, mas haverá um momento de introspecção onde as pessoas buscarão por respostas que o atual modelo não é capaz de suportar. A primeira manifestação contra Bibi, na praça Yitzhak Rabin, durante a pandemia do Covid-19 já demonstra a fragilidade dessa estrutura que carece de legitimidade.

Nunca houveram tantas tentativas seguidas de formação de governo como ocorre neste momento em Israel. O desgaste político que isso tem gerado é reflexo da falta de habilidade política da gestão em dialogar com a realidade. Israel luta muitas frentes ao mesmo tempo, o que é um exercício complexo. Há as questões internas, há a questão palestina, há a tensão bélica com seus vizinhos e ainda é preciso lidar com o fator antissemita que volta e meia retorna em pauta. 

A liquidez levou a primavera árabe para Israel? Implacável, o fenômeno gera um cataclismo político e social, fazendo todas as estruturas institucionais serem pressionadas ao extremo para responder às demandas que o momento exige. O que falta ao Estado Israelense é a percepção urgente de romper com a antiga maneira de interpretar o mundo, pois não fazê-la é como insistimos em querer usar velhas roupas que não nos servem mais.

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