Quem teme um ministro árabe?

Um dos principais temas das campanhas eleitorais israelenses de 2019 (tanto no 1° quanto no 2° turno) é a questão da legitimidade colaborativa com partidos árabes no marco de “bloco de obstrução” (גוש חוסם*) ou, deus nos livre, dentro de um governo. A campanha do Likud é focada em alimentar a ansiedade do cidadão judeu perante partidos árabes e seus líderes, utilizando os velhos argumentos de que estão planejando acabar com o caráter judaico do Estado, de que se alinham aos nossos inimigos, de que visitam famílias de terroristas mortos e não cuidam das necessidades do setor que os elegeu. Enquanto isso, o partido concorrente, Kachol Lavan, colabora tranquilamente com essas pautas. Dito isso, às vésperas das eleições israelenses, gostaria de explicar porque, na minha opinião, qualquer judeu sionista e democrata pode e deve desejar a participação da ampla maioria dos partidos árabes em Israel.

Antes de começar a falar sobre árabes e política, um pequeno esclarecimento: não interessa ao debate nos atermos a questões ligadas a concepções racistas, tais como a dúvida sobre a legitimidade de árabes participarem do jogo democrático, candidatarem-se ou serem eleitos para o parlamento israelense. Estamos no século 21 e racismo não é uma opinião. A legitimidade de uma pessoa ou de um partido participarem da política deve ser oriunda de seus atos e opiniões, e nunca relativa ao grupo étnico que pertencem. Importante partir desse ponto se nossa intenção for aprofundar essa reflexão.

De modo geral, o conceito de “partidos árabes” é uma grande generalização. A sociedade árabe é multifacetada e cheia de conflitos, e, consoante a isso, os partidos representam sub-grupos com demandas distintas e concepções diferentes. Portanto, vou me referir resumidamente a cada partido (dos quatro originais) em separado, e porque constituiria ou não uma coalizão governamental com cada um deles.

Ra’am – Partido da Sessão Sul do Movimento Islâmico

Sem aprofundar na história da divisão do movimento islâmico israelense, devido à relação com o Estado judeu e a participação do movimento nas eleições, desde 1996 a sessão sul se encontra na Knesset. Sua participação é fiel às regras da democracia israelense, apoiando a ideia de dois Estados com ênfase, principalmente, na luta pela representatividade interna da sociedade árabe e por uma política de bem estar social nas suas aldeias. Enquanto a divisão norte (que foi considerada ilegal em 2015), sob a liderança de Raed Selach, se recusou a reconhecer o Estado de Israel e sua natureza judaica, a divisão sul sob a liderança de Abdallah Nimer Darwish a reconheceu e segue reconhecendo-a de forma constante e coerente. Foi com as posições do falecido Darwish – que bravamente lutou pela coexistência de religiões em Israel até sua morte – que eu me encontrei, em 2014, em um seminário que escrevi sobre o Movimento Islâmico. Estas duas citações abaixo, de duas entrevistas diferentes ao jornal Yediot Achronot, foram ditas na minha presença:

“Os símbolos do Estado, a bandeira, a Estrela de David, a Menorá, os levamos sempre no bolso. Eu agradeço por minha existência como minoria nacional no Estado de Israel, e estou convencido de que de que justamente é esta existência como minoria que nos faz querer respeitar as leis. O que, se não a lei, protegerá as minorias? Tudo o que nós exigimos do Estado de Israel é que a lei que nos comprometemos a respeitar seja justa.” 

“[…] A Terra de Israel Completa (concepção bíblica do território), assim como a Palestina Completa, são concepções que o único que farão é levar os dois povos ao campo de batalha, e quem deseja a paz precisa deixar seus sonhos de lado e ser mais flexível”.

Convidei Mansour Abbas – novo líder político do Ra’am e, até o momento presente, secretário do movimento – para uma conversa com os alunos do departamento de Oriente Médio da Universidade de Haifa. A impressão que deixou foi a de que ele segue o caminho moderado, moderno e criativo de Darwish. Ra’am não é um partido sionista, e é ridículo esperar isso deles. No entanto, não tem interesse em desafiar o paradigma judaico. Enquanto for mantida a democracia, eles já disseram que estão aptos a ser parte de um bloco de obstrução para formar (ou evitar) uma coalizão. Sem sombra de dúvidas seus líderes são parceiros no caminho democrático, de negociações por paz, e por justiça social de um futuro governo de centro-esquerda.

Chadash

Tradicionalmente, o maior partido árabe nas eleições israelenses. Um partido secular, com uma agenda socioeconômica de esquerda, leal à democracia israelense, mantém um diálogo consistente com o estado judeu e o sionismo e trabalha diligentemente para seus constituintes. Em contraste com a atitude do partido Balad, em relação ao movimento sionista e seus partidos, no Chadash há uma atitude pragmática: existe uma distinção entre sionismo de direita e esquerda e existe um compromisso de unir forças com agentes políticos que reconhecem a necessidade de desenvolver a sociedade árabe em Israel (também à direita). Para o Chadash parcerias políticas podem ser entendidas como uma ordem provisória para interromper os processos antidemocráticos e lembram-se do acordo de bloco de obstrução com o governo Rabin (que levou a investimentos inovadores para os cidadãos árabes – desde a instalação de iluminação na entrada da vila até a construção de escolas).

Basta ouvir as repetidas declarações do líder do partido, MK Ayman Odeh, nos últimos 5 anos, para perceber que a proposta de criar parcerias políticas é real – como na seguinte citação de seu artigo de 2017:

“[…] Nós, os cidadãos árabes, devemos entender que, por si só, não seremos capazes de trazer mudanças, porque somos apenas vinte por cento, e nossos (vários e diversos) parceiros no campo democrático devem entender bem o que não podemos prescindir”.

Em uma pequena reunião na casa de verão de 2016 do Odeh, ouvi com meus próprios ouvidos como ele está comprometido com a solução de dois Estados, vivendo em paz com um estado judeu, que garante total igualdade às suas minorias e sua disposição de cooperar politicamente com qualquer pessoa disposta a promover esses objetivos. Apenas algumas semanas atrás, Odeh fez um anúncio histórico de que “ele está pronto para fazer parte da coalizão de centro-esquerda”. Enfatizo: não apoiar, não criar barricadas – estar dentro de um governo judaico-sionista. Nada que já foi dito por qualquer líder árabe-israelense, chefe de um partido árabe.

As enganosas afirmações que os líderes do Chadash estão defendendo o ódio aos judeus, o ódio ao Estado ou incentivando o terrorismo são ridículas e obscenas. No partido liderado pelo Membro da Knesset Ayman Odeh, que se opõe a todo dano a inocentes e trabalha por uma vida conjunta entre judeus e árabes, também estão a parlamentar Aida Thomas Suleiman, presidente do Comitê de Status da Mulher, que trabalha por mulheres de camadas menos favorecidas de todos os setores, e Dov Hanin, uma pessoa admirável.

Não posso concordar com todas as suas opiniões sobre política regional (seu apoio ao regime de Assad) ou sua, em princípio, aspiração pelo estado de todos os seus cidadãos (nacionalmente), mas sem dúvida – seus líderes são parceiros pragmáticos no caminho democrático, político e social do governo de centro-esquerda.

Ta’al- Ahmed Tibi

Esse talvez seja o caso mais triste de engano do público judeu. O fato de o nome de Tibby ter se tornado uma marca ameaçadora na campanha da direita e estar incorporado ao público judeu, como tal, é simplesmente um testemunho da eficácia do incitamento e da ignorância. 

Não vou entrar nos detalhes da plataforma do Ta’al, mas qualquer simples pesquisa no Google elucida o suporte permanente a uma solução diplomática de dois estados com pleno reconhecimento de Israel, promovendo o status das mulheres árabes como um tema central da agenda, diminuindo a desigualdade entre judeus e árabes e promovendo massivamente a periferia árabe (vilas não reconhecidas e árabes no Negev), juntamente com políticas de ação afirmativa. Apenas para ilustrar, no estudo de Akiva Novick, ele levanta dados que, diferentemente do exposto na campanha tóxica, o membro do Knesset Ahmed Tibi apresentou 333 leis, das quais apenas 11 podem ser consideradas sobre questões nacionais ou políticas. Ou seja, 97% de seu tempo é dedicado à promoção dos seus interesses constituintes. Além de ser um espirituoso, eloquente e o mais humorado membro do Knesset, Ahmed Tibi também é empático, aberto e compreensivo com o espírito judaico e os medos existenciais históricos judaicos:

“A experiência do Holocausto é uma experiência sem fim e única. […] Moro com vocês, estou comprometido em entender suas alegrias, sua tristeza, o que é bom para vocês e o que está lhes fazendo mal. Assim como eu espero que vocês me conheçam”, disse ele em seu memorável discurso no Knesset no Dia do Holocausto. 

Ahmed Tibi é um parceiro importante de um governo democrático, um governo sionista que ama a paz, certamente dentro da lógica e da estrutura de um bloco de obstrução.

Balad

Bem, chegamos ao meu “quase”. Ao contrário da repulsiva abordagem “Zoabistas”**, não acho que o Balad seja um perigo para o estado, à democracia ou à segurança de Israel. Eles representam uma voz no setor árabe, na qual o componente da identidade palestina supera outros elementos da identidade (menos muçulmana, menos classista e muito menos israelense, é claro). O currículo ativista de seus líderes anteriores (espionando para o Hezbollah, participando da flotilha de Marmara, encorajando a resistência violenta, contrabandeando telefones celulares para prisioneiros de segurança e muito mais) torna difícil tratar minha tese de maneira neutra e desapegada – mas dediquei a isso o tempo adequado. A plataforma deles parece muito com os princípios democráticos e sociais dos outros partidos – mas a grande diferença está na perspectiva em relação à maioria judaica, ao estado judaico e à ideia sionista. Para os ativistas do Balad, o sionismo é a fonte de todo mal, e a luta (não violenta) contra ele é um princípio. Neste sentido, a esquerda sionista não é menos culpada do que a direita sionista pelas injustiças históricas, e uma cooperação pragmática com eles seria irrelevante. Dessa maneira, um “bloco de obstrução” (كتلة مانعة) é, para eles, um “bloco de aparências” (كتلة مايعة)***.

A atitude deles em relação à questão das fronteiras do Estado e à resolução do conflito palestino é, a meu ver, a imagem espelhada da visão da direita – um estado para todos os cidadãos, do rio Jordão ao mar mediterrâneo (com maioria palestina). Ou seja – uma atitude que falha em reconhecer e aceitar o Estado de Israel, certamente não como um lar nacional para o povo judeu e, em princípio, se opõe ao estabelecimento de um Estado palestino ao lado dele.

Nas últimas semanas, fui exposto a várias opiniões sobre o Balad por figuras públicas que respeito e, portanto, estou curioso para ouvir mais opiniões sobre o assunto, mas, até hoje, não encontro lógica e não acredito que seja relevante existir uma cooperação política entre partidos sionistas e o Balad (e acho que o Balad concorda comigo nisso).

Conclusão

Uma liderança sionista, judaica e democrata pode e deve colaborar com pelo menos 3  partidos árabes na formação de um novo governo ou no marco de um “bloco de obstrução”, sem contradições ou preocupações com o futuro do estado judaico. O contrário, ou seja, continuar impedindo a integração de 22% da população Israelense no sistema político, gera uma verdadeira ameaça sobre o Estado democrático e a resiliência da sociedade israelense por longo prazo.

Jabotinsky não temia um ministro árabe – então porque nós devemos temer?

* Bloco de apoio político formado entre um ou vários partidos da oposição com os partidos da coalizão. Esse tipo de acordo foi feito em 1992, entre governo Rabin e os partidos árabes.
** Em Fevereiro 2013, MK Yair Lapid chamou todos os líderes árabes de “Zoabistas” (em nome da MK Chanin Zoabi do Balad), como referência de extremismo árabe.
*** Referência ao artigo de Amir Fakhir.

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Imagem: Jornal Yediot Achronot com a frase “Estou disposto a ingressar em uma coalizão centro-esquerda” de Ayman Odeh.

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